Perdi as contas de quantas vezes fui ao colégio de bicicleta. E também em quantas delas fui parar no chão no meio do caminho. Acontece que quando a gente é criança e vive num emaranhado de esparadrapos, carrega os cotovelos esfolados por aí como se fosse coisa grande. Na infância, os machucados são tidos como imensas honrarias, títulos de nobreza, a marca de uma aventura que – ainda que malsucedida – nos distingue dos meninos da rua de baixo porque, enfim, respiramos fundo e tomamos coragem de nos arriscar entre uma ou outra traquinagem na volta para casa. Com sorte, nunca parei de ralar os joelhos. Tanto e de tal modo que meus amigos sempre sabem que eu perdi alguma coisa quando esbarram em um objeto manchado de laranja, tudo culpa daqueles frasquinhos de antisséptico que insistem em estourar dentro da bolsa. Continuo por aí, cheio de remendos.
Como se as minhas decisões – acertadas ou não – fossem se costurando na pele através de pequenas cicatrizes, marcas e arranhões que decidiram ficar comigo depois de tudo. De vez em quando, claro, tentei me livrar desses rabiscos. A gente, quando cresce, fica com essa mania besta de apagar todos os riscos.
Não só os que o tempo e a vida escreveram em nosso corpo. Mas também aqueles que cercam os nossos desejos, os sonhos que temos, as oportunidades que acenam lá de longe. Na vida adulta, arriscar-se, aceitar novas empreitadas, soa como algo distante, da infância, coisa de quem não tem muito juízo. Às vezes, é preciso perdê-lo para acertar as contas. “Quando eu falava para as pessoas que eu ainda não sabia andar de bicicleta, elas ficavam muito surpresas ou admitiam que também não sabiam”, diz o programador Bruno Romaskiewzc.
Em vez de se contentar com uma bela distância das magrelas, ele apostou que sobreviveria a alguns tombos. Então, combinou com um grupo de amigos de passar uma tarde no parque do Ibirapuera, em São Paulo, e só sairia dali depois de ter aprendido a pedalar.
Não se sinta tão seguro
Sem querer, no boca a boca, a brincadeira de Bruno foi crescendo e deu início à “Oficina de Coisas Banais que Você Deveria ter Aprendido na Infância Mas Não Aprendeu”, uma iniciativa que acabou se espalhando por mais duas capitais (Vitória e Brasília) e juntou um monte de gente disposta a voltar a ser criança e a aprender algo novo. E não só a andar de bicicleta, mas também a sair por aí de patins, fazer bola de chiclete ou a dar nó no cadarço. “Criei um evento numa rede social para lembrar os amigos e as pessoas acabaram gostando e se apropriando da brincadeira também”, comenta Bruno.
“Quando vi, já tinham mais de cinco mil pessoas confirmadas”, diz. Apenas algumas dezenas compareceram ao dia em que o evento estava programado. “No encontro, percebemos que muita gente se sentia um pouco arrependida por ter deixado alguma coisa por fazer na infância”, revela o programador. “E que talvez por isso elas chegassem até nós tão inseguras”.
Mas bastaram alguns minutos para que se soltassem e se aventurassem por um ou outro tombo. Muitas vezes sem perceber que foi exatamente aquele frio inicial na barriga que as levaram até ali. “Nossa sociedade supervaloriza a ideia da segurança“, avisa o psicólogo Jésio Zamboni. “E muitas pessoas perseguem isso como um ideal de vida, como se fosse bom não ter conflito, desequilíbrio, alguma decepção“, continua Zamboni. Acontece que essa sensação de estabilidade, que nos leva a permanecer na tal zona de conforto, funciona mais ou menos como aquelas rodinhas que nos acompanham desde a primeira bicicleta. Elas nos deixam mal-acostumados e nos forçam a seguir em linha reta sem tombos. E aí fica muito mais difícil aprender a pedalar em duas rodas e sem apoio. Ou viver. Arriscar-se não tem nada a ver com sentir-se seguro, mas com enfrentar aquilo que nos tira do eixo.
Não à toa, uma das maiores felicidades da infância é quando saímos por aí em ziguezague, assim que alguém decide desaparafusar as rodinhas laterais de apoio. Por isso, pare e pense em tudo o que você tem se ancorado quando bate aquele medo de se arriscar e as coisas não darem certo. Será que não está na hora de pegar a sua chave de rodas e afrouxar os próprios parafusos? “A vida muda o tempo todo e temos que ter essa habilidade de variar com o mundo, de nos sentirmos livres, sem qualquer amarra, porque aí somos mais capazes para agir e criar diante dos nossos problemas”, explica Zamboni.
Tudo pode dar certo
Alguns parafusos a menos nos levam a perceber que a vida, acima de tudo, é uma aposta. Isso não significa que devemos ficar à mercê de estatísticas que, a primeira vista, parecem ser um daqueles bichinhos que grudam na gente e ficam ali remoendo as nossas possibilidades. Claro, quando falamos em arriscar – seja para aprender a andar de bicicleta ou largar aquele emprego chato – invariavelmente pensamos nas chances de algo dar certo ou não. E, dentro da margem de erro, é fácil apostar que os nossos sonhos são improváveis e que as coisas vão dar errado.
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