APRENDENDO A APRENDER – Tudo bem errar
Um modelo antigo e ainda usado em boa parte das escolas nos ensina a evitar os erros. E isso vai sendo incorporado por meio da mensagem de que falhar é ruim e algo a ser evitado.
Um modelo antigo e ainda usado em boa parte das escolas nos ensina a evitar os erros. E isso, sem que a gente se dê conta, vai sendo incorporado por meio da mensagem de que falhar é ruim e algo a ser evitado. A questão é que os equívocos fazem parte da nossa imperfeita condição humana. Então, que tal reaprender a acolhê-los com mais gentileza e menos dureza?
Uma amiga me contou, outro dia, sobre um desentendimento com a chefe. Como havia uma demanda urgente e a gestora não estava ali, ela escolheu um caminho a seguir. A supervisora, pouco depois, pediu que ela resolvesse a situação de outra maneira. Nada demais, uma situação comum em qualquer trabalho, mas mexeu com ela.
“Mesmo que eu não me importasse em mudar o encaminhamento, me incomodou parecer que eu estava errada”, ela contou. Enquanto ouvia, fui pensando nas relações que cenas do nosso cotidiano podem ter com a maneira como somos educados dentro e fora da escola. Ela, como eu, havia sido boa aluna.
Do tipo que sempre tira notas ótimas e se adianta para responder ao professor. Lembro que, até me formar no Ensino Médio, sempre analisava as provas corrigidas, querendo saber: onde foi que eu errei e por quê? Cada xis vermelho parecia uma denúncia de que eu havia falhado e também uma forma de me repreender.
Parece difícil, ainda hoje, educar sem cair em fórmulas que demonizam o erro. Parte disso é herança de uma maneira bastante ultrapassada de encarar o desenvolvimento e a aprendizagem. Por muito tempo, prevaleceu a ideia de que nascemos como “tábulas rasas”, ou seja, de que o conhecimento e as informações vão sendo depositados em nossas mentes conforme crescemos e amadurecemos.
O papel de quem ensina é fornecer informações, e o de quem aprende é absorvê-las para que, no momento da avaliação, devolva o que foi transmitido.
Como exemplo, uma situação que quase todos passamos: em uma aula de Matemática, a professora trabalha a tabuada do 10 (10 x 1 = 10, 10 x 2 = 20, e assim por diante), os alunos precisam repeti-la, recitando ou copiando diversas vezes. Algumas aulas depois, eles fazem uma prova em que há a pergunta “Quanto é 10 vezes 7?”.
Nesse contexto, se o estudante errar, significa que ele falhou na simples ação de internalizar algo que lhe foi dado e é, com frequência, culpado ou penalizado por isso: pode perder um ponto na prova ou ouvir que não teve boa memória, ou não se dedicou o suficiente.
“Se o estudante errar,
significa que ele falhou
na simples ação de
internalizar algo que
lhe foi dado e é, com
frequência, culpado
ou penalizado por isso”
Muitos pensadores, alguns há muito séculos, contrariam essa concepção, mas foi a obra do suíço Jean Piaget que se tornou mais relevante para a construção de um novo modo de se ver o processo de ensino e de aprendizagem. Piaget investigou como se dá o nosso desenvolvimento na infância e, por consequência, abriu caminho para a realização de pesquisas sobre como as crianças aprendem.
Suas observações o levaram a concluir que, desde que nascemos, vamos construindo ideias sobre o mundo e reformulando-as quando necessário. Nessa concepção, o erro é inevitável e fundamental para que novos conhecimentos sejam construídos.
ESCREVER “ERRADO”
Foi com base em crianças que escreviam “errado” que as pesquisadoras argentinas Emilia Ferreiro e Ana Teberosky conseguiram mudar completamente a maneira como a alfabetização é vista. Ao pegar uma cartilha tradicional de alfabetização – como aquelas que eram muito populares até a década de 1970 –, vemos que os primeiros capítulos têm como objetivo treinar as crianças a fazer determinados movimentos com o lápis, depois elas aprendem a escrever as letras e, por fim, são ensinadas a combiná-las.
Ferreiro e Teberosky investigaram o que aconteceria se as crianças fossem permitidas a escrever da maneira como sabem, mesmo antes de terem passado por todos esses passos.
Elas observaram escritas “erradas” – hoje chamadas de não convencionais –, descobriram como a apropriação do sistema de escrita se dá e o quanto aquele modelo tradicional estava desassociado dela. Iniciou-se, então, uma transformação completa na maneira como as escolas ensinavam a ler e a escrever.
Se observarmos com um pouco mais de detalhe o trabalho das pesquisadoras, conseguimos entender a importância que os “erros” tiveram. De acordo com elas, as crianças constroem hipóteses sobre a escrita conforme avançam na alfabetização. Em uma dessas hipóteses, os pequenos acreditam que cada letra representa uma sílaba das palavras.
Quando trabalhava em Nova Escola, revista voltada a professores, publicamos uma reportagem sobre uma aula em que essa hipótese entrou em jogo. Nela, as crianças tinham de escrever nomes de animais estampados em cartas de jogo da memória. Ao ser convidado a registrar a palavra “pelicano”, um dos estudantes escreveu PICO.
Ainda que as grafia estivesse distante da maneira convencional, a produção dessa criança revela muito sobre o que ela já sabia a respeito do sistema de escrita: que se escreve da esquerda para a direita, que há alguma relação entre os sons e a maneira como escrevemos, que as sílabas são importantes.
Nesse caso, o “erro” não é visto como um sinal daquilo que o aluno não sabe, mas um sinal de tudo o que ele já conhece. Na semana seguinte, os estudantes tiveram que preencher a outra carta do par e, dessa vez, a mesma criança escreveu PIAO. Para que refletisse e pudesse avançar no seu conhecimento, a professora interveio, apresentando as cartas e questionando o porquê das grafias serem diferentes, ouvindo as justificativas e apresentando novas questões. O erro se tornou matéria-prima da aprendizagem.
ERRAR, MESMO SEM PERMISSÃO
Encarar os erros como oportunidades não é deixar de reconhecê-los, mas o oposto. Precisamos olhar para as situações em que falhamos não como algo vergonhoso ou que precisemos justificar – como sentiu minha amiga diante da chefe –, mas como uma etapa para que aprendamos coisas novas (e erremos em coisas novas também!). Há alguns anos, encontrei alguns materiais que minha mãe guardou do meu primeiro ano na escola.
“Precisamos olhar
para as situações
em que falhamos não
como algo vergonhoso,
mas como uma etapa
para que aprendamos
coisas novas”
Folheando, ficou claro como minha professora se inspirou nessas perspectivas mais modernas. Fiquei feliz.
Pensei que talvez o meu conforto de errar no comecinho da alfabetização tenha me deixado confortável para me arriscar a errar em todos os textos que fui escrevendo ao longo da vida. E, se eu não tiver errado demais em prender sua atenção e despertar seu interesse, você lerá nas próximas edições outras reflexões sobre a maneira como educamos e somos educados. Mas, se este texto todo tiver sido um erro, talvez até valha a pena você voltar para ver se eu de fato aprendo com minhas falhas. Até lá!
A SÉRIE APRENDER APRENDENDO é uma parceria entre a revista Vida Simples e a Camino Educação. A proposta é apresentar novos olhares e caminhos sobre como buscar conhecimento para entendermos melhor a gente mesma, o mundo ao redor e aquilo que nos interessa, dentro ou fora dos espaços formais.
A CAMINO EDUCAÇÃO tem seu trabalho focado nos valores humanos. Une experiências e perspectivas de educadores, administradores, empreendedores e acadêmicos para criar um ecossistema global em que estudantes, professores, escolas, famílias, comunidades e organizações podem unir forças, criar caminhos educacionais inovadores. www.caminoeducation.com
WELLINGTON SOARES é jornalista formado pela Universidade de São Paulo. Trabalhou por seis anos na produção de conteúdos para professores da Educação Básica. Atualmente, descobriu-se professor e dá aulas, mas segue escrevendo e ajudando organizações do terceiro setor a produzir conteúdos sobre Educação.
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