Ana Mi: a urgência de vida de quem não tem tempo a perder
Ana Mi, criadora do @paliativas, compartilha como a notícia de uma metástase fez nascer a vontade e a coragem de estar viva até o último suspiro
- Entrevista com Ana Mi, do @paliativas
- Quero começar pela sua infância. Como era a Ana menina?
- E isso se concretizou?
- Então você se casou...
- O diagnóstico do câncer chegou aos 28 anos, em 2011. Em que momento de vida você estava?
- É comum atribuirmos às grandes mudanças da vida o título de professor por todos os ensinamentos que elas nos trazem. Diria o mesmo da doença?
- Em seus textos, você enfatiza bastante a vivência do momento presente, a oportunidade de aproveitar cada instante. A Ana antes do diagnóstico também pensava assim?
- Certa vez, você disse que “derrota é não ter estar presente na própria vida enquanto foi possível”. E finaliza dizendo: “eu estou”. O que é estar presente para você?
- Falar de morte assusta?
- Por que acha que somos tão obcecados pela cura?
- Acredita que cada ser humano tem uma missão única no mundo, o chamado propósito?
- Você descobriu?
“Você pode não ter mais nada para fazer pela doença, mas, pelo ser humano, sempre terá o que fazer”, diz Ana Michelle Soares (in memoriam), ou Ana Mi. Aos 32 anos, as imagens da ressonância magnética de abdômen superior acusaram metástase em seu organismo. Quatro anos antes, tinha sido diagnosticada com câncer de mama. Agora, era considerada uma paciente paliativa pela medicina, o que quer dizer que não havia mais possibilidade de cura para sua doença.
Entre acreditar que morreria em questão de pouco tempo e descobrir a potência da vida que habita todos os nossos dias, desde que estejamos abertos a percebê-la e empenhados em não desperdiçá-la, conheceu Renata, que recebera um diagnóstico semelhante. Juntas, reencontraram sentidos e abriram caminhos para falar do que é comum a todas as pessoas que vivem: a finitude. Para dividir suas descobertas, criaram o perfil @paliativas.
Renata faleceu em agosto de 2018 tendo vivido uma ótima vida, nas palavras dela. Ana Mi acaba de lançar Enquanto eu respirar (Sextante), em homenagem à amiga que lhe estendeu a mão e caminhou ao seu lado na busca pela essência esquecida. À Vida Simples, ela fala sobre a descoberta do câncer e as ressignificações que vieram a partir dele.
Entrevista com Ana Mi, do @paliativas
Quero começar pela sua infância. Como era a Ana menina?
Tive uma infância solitária. Meu pai viajava muito a trabalho, minha mãe o acompanhava e acabei sendo criada pela minha vó. Era bem tímida, e a forma que encontrei para me comunicar foi escrevendo. Como não tinha muitas histórias para contar, escrevia sobre as minhas Barbies independentes, que adoravam viajar numa caixa de sapato. Então, cresci tendo o sonho de ter muitas companhias na vida, mas de ser independente.
E isso se concretizou?
De certa forma, sim. Mas, quanto mais crescia, mais percebia que tudo estava condicionado ao “precisar de”. Sentia uma cobrança enorme por relacionamentos amorosos, por encontrar o homem da minha vida. Via minhas amigas só se sentirem completas quando encontravam um parceiro. O mundo não está preparado para lidar com mulheres que só querem ser elas e estão ótimas com isso.
Então você se casou…
Achei que um marido realmente seria o caminho, então me coloquei à disposição para encontrá-lo. Passei a tentar me encaixar em um padrão que parecia o correto para todo mundo. Só que, nesse processo, eu sentia que estava só existindo. Casei, mas não era um relacionamento saudável. Mesmo assim, eu quis tanto manter aquela situação, porque gostava do conforto de ser aceita, e aí eu achei que era ali que eu deveria ficar.
O diagnóstico do câncer chegou aos 28 anos, em 2011. Em que momento de vida você estava?
Eu estava casada há dois anos e já passávamos por umas crises bem difíceis. Tinha acabado de me mudar para uma casa grande, porque era esperado que tivéssemos um filho depois de dois anos casados. Foi então que descobri que estava doente. Na hora de diagnóstico, o que mais pesou para mim não foi pensar que eu morreria. O conflito foi “se inteira eu já sou traída o tempo todo, imagina sem peito e careca?”. Minha preocupação foi essa estética que era o mais importante para o homem com quem eu dividia a vida.
É comum atribuirmos às grandes mudanças da vida o título de professor por todos os ensinamentos que elas nos trazem. Diria o mesmo da doença?
Eu não consigo dar ao câncer esse crédito todo. Ele foi um chamado para o tempo que eu estava desperdiçando sendo o que eu não era. O que eu fiz do meu tempo? Fui atrás de entender que finitude existe para todo mundo. Foi um encontro com a mortalidade. O câncer é biológico. Para mim, funcionou como um chamado para minha consciência humana do tempo. O meu professor foi minha própria consciência de finitude.
Em seus textos, você enfatiza bastante a vivência do momento presente, a oportunidade de aproveitar cada instante. A Ana antes do diagnóstico também pensava assim?
Quando peguei os resultados dos exames, me dei conta de que não tenho tempo a perder. Eu comecei a querer acabar com esse ciclo de sofrimento. Aprendi também que isso que chamamos de sociedade, no fim das contas, não está nem aí para o que cada um está enfrentando. A gente vive querendo agradar um monte de gente, e esse monte de gente está vivendo a própria vida, sentadinho na cadeira de juiz, julgando todo mundo. Você tem que ser você, respeitar você, seu corpo, suas escolhas.
Certa vez, você disse que “derrota é não ter estar presente na própria vida enquanto foi possível”. E finaliza dizendo: “eu estou”. O que é estar presente para você?
É jogar com as cartas que você tem. Eu não preciso pensar no tempo que ainda tenho, porque não sei quanto tempo resta e não sei quanto tempo cabe nesse tempo que resta. O que eu sei é que hoje eu estou aqui. Tem dias em que minhas cartas não são muito boas. Às vezes, estou numa UTI sem acesso a ninguém, ou internada para melhorar minha imunidade. Mas essa é minha carta do meu dia e eu preciso lidar com ela.
Falar de morte assusta?
Olhamos para a morte como um fim que não deu certo e ignoramos toda a biografia da pessoa. Tudo o que ela foi e fez. Quando você olha para a morte, você tem que colocar significado na sua vida. E esse encontro que só você pode fazer consigo mesmo te convida para uma reflexão que, às vezes, você não está preparado para fazer.
Por que acha que somos tão obcecados pela cura?
Eu sempre me questiono: o que que é a cura? Eu sou a mulher doente mais saudável que eu conheço. Cura é ausência de doença? Você não tem nenhum diagnóstico médico, mas não consegue se relacionar com ninguém, só reclama da vida, vive amargurado. Então, eu te pergunto: você está curado? Do que exatamente? Sinto que a gente não quer cutucar lá no fundo para saber qual é o problema de verdade. Porque, muitas vezes, não é estar com câncer. Eu me sinto curada do que importa para mim. Estou bem, independente do que diz um exame. Essa é a cura mais transgressora que existe.
Acredita que cada ser humano tem uma missão única no mundo, o chamado propósito?
Eu vejo a questão do propósito como uma vida que tenha significado não só para você nutrir seu ego. Acredito no livre arbítrio, mas não consigo acreditar numa existência que seja legal quando você vive em função do seu ego. Só existe eu, para mim, por mim, comigo. Você morre e só viveu para você. Foi uma existência muito inexistente. Você não escreveu história nenhuma, só leu a sua própria o tempo inteiro. Dentro do que eu entendo de espiritualidade, não consigo acreditar que a pessoa já vem destinada a ser isso ou aquilo. O grande barato está em você descobrir em que você pode ser legal e de que forma pode agregar significado à vida dos outros.
Você descobriu?
Meu propósito tem sido esse de ser voz de pacientes graves. Que, em geral, são pessoas invisíveis. Ninguém dá voz a elas porque elas estão morrendo. Então, é como se estivessem fracassadas. Não queremos lidar com o fracasso. Queremos só ver histórias vitoriosas. Quando vejo que consegui transformar minha dor em algo bom para o outro, me sinto feliz.
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