Durante quatro anos, Hilaine Yaccoub morou em uma favela carioca, a Barreira do Vasco. O objetivo era entender como os moradores de comunidades consumiam, tanto coisas como serviços.
O interesse de Hilaine por esse tema era antigo e a acompanhava desde a graduação em ciências sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Nascida e criada em São Gonçalo, subúrbio carioca, ela sempre se interessou em entender as pessoas. “Na faculdade, quando via meus professores falando de temas que lhes eram atraentes, como umbanda, questões raciais ou de gênero, eu pensava que aquilo não era objeto de estudo pra mim, porque fazia parte da minha vida. Mas, ao mesmo tempo, eu percebia que ninguém sabia o que era ser pobre”, conta.
Foi isso que direcionou — e ainda direciona — o caminho dessa antropóloga que mantém um único grupo de
conversa em seu WhatsApp: “família”.
Qual família? A da favela Barreira do Vasco, onde morou de 2011 a 2015, para pesquisar e recolher material para a sua tese de doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Por fim, seus estudos renderam convites para falar no TEDx, palestras sobre consumo da classe C, trabalhos de pesquisa de mercado e, em breve, dois livros.
Mas Hilaine, sábia e sensível que é, sempre gosta de ir além dos rótulos. Ela acredita que na favela moram as respostas para muitas de nossas questões. Do compartilhamento das coisas à economia circular e da sustentabilidade da natureza e de nós mesmos. E foi sobre esses aprendizados que conversamos com ela.
Como você foi parar na Barreira?
Para entender isso, preciso explicar um pouco da minha trajetória. Pouco depois de me formar, fui trabalhar como analista social em comunidade para uma empresa de energia elétrica, no Rio. Eles queriam entender por que as pessoas faziam gato (furto e fraude de energia elétrica), e para isso fui morar numa comunidade. O lugar escolhido foi um bairro chamado Coelho, em São Gonçalo, onde permaneci por oito meses. Lá, eu convivia com pessoas que podiam pagar pela energia, mas que optavam por não pagar. Elas tinham carro e colocavam os filhos nas faculdades particulares. Entendi que o gato estava intrínseco na educação e vem da ideia de uma natureza dadivosa. E isso se transformou no meu mestrado — Atirei o Pau no Gato: Uma Análise sobre o Consumo e Furto de Energia Elétrica (dos”Novos Consumidores”) num Bairro Popular de São Gonçalo — RJ.
A partir daí, passei a querer entender por que sempre que a imprensa falava sobre gato colocava a foto de uma favela. Minha tese, afinal, havia me mostrado que isso não era só algo da favela. Contudo, tem até condomínios de luxo fazendo isso. Então, comecei a ir além: será que o morador de favela quer fazer o gato? Foi nesse período que um colega comentou que a mãe, moradora da Barreira do Vasco (favela que fica próxima da Avenida Brasil, no Rio) estava sem energia. Ela ligava para a concessionária, pedia um medidor, mas eles não iam lá. Fui conhecer a mãe dele, dona Ana. E encontrei uma favela pequena, de 22 mil habitantes, com cerca de 7 mil casas, e uma única facção. Decidi morar lá. Meu objetivo era entender a motivação das pessoas, do gato de energia ao de água e suas escolhas de consumo.
Era para ser uma pesquisa de doutorado e você ficou por quatro anos. Como isso aconteceu?
Fui me envolvendo. Primeiro, aluguei uma casa perto da dona Ana, que ficava na parte nobre da favela. Até que percebi que precisava andar em outros núcleos. Foi quando conheci a Vânia, presidente da associação de moradores, e me mudei para o beco, o interior da favela. Finalmente, fui morar perto da Vaninha, como é conhecida. O beco é a parte interna, de acesso mais complicado, onde não passa carro. É onde as pessoas se cuidam, as crianças jogam futebol e onde acontecem as festas.
A favela não é algo à parte da cidade. Ela é a cidade. E as pessoas são as pessoas. Sem divisão de quem é de fora ou de dentro. Portanto, precisamos desconstruir essas barreiras para entender a diversidade
O que aprendeu nesse período?
Aprendi o que é, de verdade, viver em comunidade, olhar e se importar com o outro. A Vânia e a mãe dela, dona Eunice, que morreu em 2015, sempre tiveram um sentido de comunidade muito forte, de olhar para a necessidade do outro muito além da própria. A Vânia é a pessoa-chave da rede, aquela que conecta todos os outros pontos. Quem precisa trabalhar e não tem com quem deixar os filhos deixa no beco que alguém olha. Ademais, a Vaninha também fazia, com frequência, pipoca para as crianças. E, para isso, pedia a pipoqueira da vizinha. Enfim, um dia, questionei por que não comprava uma e ela respondeu:”Hilaine, você já viu o tamanho da minha cozinha? Se comprar tudo o que preciso, quem vai morar na minha casa são as coisas’.
A gente não tem essa noção nem de compartilhamento, tampouco de comunidade.
Sim. Para quem vê de fora, existe até um romantismo nisso. Mas isso é, ao mesmo tempo, bem difícil. Você não pode dizer”não” para a rede. Você é refém. Só se nega algo quando se está doente, com um parente doente, ou se precisa trabalhar para sobreviver. Você não pode negar algo porque não está com vontade. Outra coisa, se o outro pegou a sua torradeira e quebrou, você tem que resolver. Não adianta ficar de mal. Porque, uma hora, alguma coisa vai acontecer, boa ou ruim, que vocês vão ter que resolver juntos. É uma vivência tão intensa que, quando me mudei de lá, não sabia mais o que gostava, porque as esferas do público e do privado se misturam.
Essa experiência a afetou?
Você se mistura àquilo, e isso vira um projeto para além da sua tese. Eu resgatei valores da minha família. Às vezes, eu me incomodava com o barulho. Porque as pessoas ouvem música e falam muito alto. Quando isso me perturbava, saía. E no silêncio eu sentia falta da favela. E voltava porque as pessoas faziam falta.
O que temos a aprender com eles?
Generosidade. Eles me mostraram que somos todos seres humanos. E Quando me perguntam: “O que você viu lá?”. Eu digo que vi a mim mesma. Na favela, as pessoas se olham, porque também não tem outro jeito. Não tem como não se olhar. Lembro de uma senhora, cuja filha ia se formar, mas ela não ia porque não tinha roupa. Então Vaninha começou a reunir as pessoas e alguém emprestou uma roupa, a outra fez maquiagem, a outra, cabelo. Formatura de filho é evento importante, não se perde. Roupa se ajeita. E todos compreendem isso e se unem. Tem união na prática. E uma empatia profunda em relação ao outro.
É uma convivência menos egoísta?
Existem momentos em que as pessoas são egoístas e outros em que não tem como não ajudar. E isso não é porque elas são melhores, é porque o contexto é tão precário que elas tiveram que ser assim. Não tem como não ser tocado pela necessidade do outro, porque em algum momento você estará naquele lugar. O tempo todo a realidade lhe joga na cara que você está na vulnerabilidade.
Você costuma dizer que a resposta está mais próxima do que imaginamos, basta olhar as pessoas com a lente certa. É isso?
Sim. As pessoas adoram buscar respostas nas experiências da Europa e não costumam olhar para o que está ao lado, na favela. Eu olhei com a lente certa e a minha vida foi transformada. A favela não é algo à parte da cidade. Ela é a cidade. E as pessoas são as pessoas. Sem divisão de quem é de fora ou de dentro da favela. Portanto, precisamos desconstruir essas barreiras para então ter um entendimento da diversidade, porque fala-se muito sobre respeito à diversidade, mas ela é mais sobre igualdade do que sobre diferença. Eu preciso me conectar com essa igualdade. E foi isso o que encontrei lá.
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Conteúdo publicado originalmente na Edição 198 da Vida Simples
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