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Um passeio muito estranho pelo Museu do Prado
Diego Velásquez, "As Meninas" (1656)
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Na coluna desta semana, Reinaldo Polito se aventura pela ficção e nos traz um conto ambientado em Madri. Essa história mistura suspense, conhecimentos históricos e muita cultura.

Todos os museus têm seus encantos e suas peculiaridades. Particularmente gosto dos bons museus, não tão grandes, como o caso do D’Orsay, em Paris; do Rijksmuseum, em Amsterdã; e do Prado, em Madri. Em um dia, sem muita correria, dá para apreciar obras de praticamente todos os estilos e entender bem as características de cada uma das escolas. A história que aconteceu com Jorge, porém, fugiu dessa normalidade.

Três e quarenta e cinco da madrugada, e o domingo já estava quase virando segunda-feira. Madri, uma cidade sempre movimentada e cheia de vida, estava vazia. A chuva, que começara às duas da tarde, afugentou espanhóis e turistas das ruas.

Jorge estava de férias e adorava andar debaixo da chuva. Sem muita noção para onde ir, tomava o cuidado de circular pelas ruas mais iluminadas e movimentadas.

Olhou para o relógio da praça e se surpreendeu ao ver que eram quase quatro da manhã. Sabia que Madri era bonita, desenvolvida, charmosa, mas, como grande metrópole, também bastante perigosa.

Estava de um lado da Rua Ruiz de Alarcón e notou que três homens vestindo capotes longos e escuros, com a cabeça coberta por tocas da mesma cor, falando baixo diminuíram o passo com atitude suspeita. Como se seu destino estivesse na calçada oposta, Jorge olhou dos dois lados da rua para ver se não havia carros passando e deu uma pequena corrida.

Nesse momento um guarda se aproximou e o convidou a se abrigar na entrada do prédio.

— Por favor, fique um pouco aqui perto da porta. Parece que esses homens não estão bem-intencionados.

— Obrigado. – Jorge agradeceu – Eu realmente estou com medo e não saberia o que fazer se viessem em minha direção.

Só aí ele se deu conta de que conhecia muito bem o prédio onde estava. Era o Museu do Prado, o mais importante da Espanha e um dos mais respeitados e admirados do mundo. Por ser professor universitário, costumava ilustrar suas aulas com reproduções de telas abrigadas naquele edifício tão bonito e tradicional.

Ficou ali conversando com o guarda, que se mostrou impressionado com o nível de conhecimento de Jorge sobre a arte espanhola. Falaram sobre os grandes mestres, especialmente El Greco, Goya e Velázquez. Os papeis chegaram a se inverter. Rodriguez, o espanhol que trabalhava no museu, estava recebendo aulas de um brasileiro sobre a pintura espanhola, e não se incomodou nenhum pouco em ouvir.

Durante uma pausa escutaram um choro de criança. Andaram por todas as partes externas do edifício e não encontraram nada. Passados alguns minutos, o choro voltou com muito mais intensidade.

O guarda ligou o intercomunicador e pediu ajuda. Em pouco tempo meia dúzia de policiais chegaram para dar auxílio. Descobriram que o choro saía de dentro do museu.

— Você não poderá entrar – disse-lhe Rodriguez. Espere aqui que trarei notícias do que está acontecendo.

Jorge esperou o quanto pôde. Já com o dia claro, por ser segunda-feira o museu permanecia fechado para o público. Quase perto do horário do almoço sentiu que daquele mato não sairia coelho. Foi para o hotel descansar.

Estava intrigado. O que será que aconteceu naquele local? Quem estava chorando? No dia seguinte, retornou ao museu sem saber o que procurar.

Atravessou lentamente os corredores tentando mais ouvir o que se passava à sua volta que propriamente ver os quadros que conhecia tão bem. Havia apressado os passos quando viu à sua esquerda lá no fundo, imponente, a grande obra daquele museu, As Meninas, de Velásquez.

Imagem: Obra de Diego Velázquez, “As Meninas”, 1656. óleo sobre tela. Museu do Prado, Madrid.

Soberba, instigante, bela, uma obra prima. O local estava sempre muito concorrido, mas não naquele momento. Tinha a sensação de que Velásquez o pintara só para ele, com exclusividade.

Quando pensava em continuar o passeio ouviu uma voz de criança:

— Hei, não vá embora, preciso de você.

Jorge olhou pelos lados e não viu nenhuma criança. Deu dois tapas no próprio rosto. Devia estar delirando.

— Aqui, olhe aqui em cima.

Ao levantar a cabeça notou que o quadro estava modificado. A Infanta Margarita posicionara-se de costas, com as mãos na cabeça, como se estivesse arrumando o cabelo. O cachorro levantara-se e se espreguiçava esticando as patas dianteiras. Velásquez, que se retratara na pintura, já não aparecia na tela. Isabel, uma das meninas, dirigira-se ao fundo da sala para fechar a porta, por onde entrava a claridade. Agustina, a outra menina, cobria a parte direita do quadro. Com o semblante triste, ela sussurrou para Jorge:

— Estou aqui há séculos. Vejo as pessoas olhando e admirando o quadro, mas quase não me notam. Velásquez trançou os pauzinhos para colocarem o quadro aqui, assim satisfaz seu ego com os comentários que ouve todos os dias. Sabia que ele não assinava suas pinturas porque se julgava tão inimitável que todos saberiam ser uma obra dele só de olhar?

Jorge ouvia a voz da menina sem acreditar. Estava paralisado. Sim, ele sabia de tudo. Nenhuma daquelas informações constituía novidade para ele. Velásquez era mesmo vaidoso, sua imagem não estava apenas no quadro “As meninas”; ele havia pintado a própria figura também em “As lanças”. Uma das últimas obras que Jorge comentara com os alunos em sala de aula.

— Não se assuste, Jorge. Eu o conheço muito bem. Recebi informações de outras personagens dos quadros de El Greco que você estava na porta conversando com o guarda. Foi uma grande surpresa, ninguém o esperava por aqui. Chorei naquela madrugada para chamar sua atenção.

Desconfiado, Jorge resolveu perguntar:

— O que você está querendo, afinal?

— Nada especial. Só quero que conte histórias bonitas a meu respeito. Desejo ser conhecida, mais conhecida ainda do que sou hoje. Quero que as pessoas venham até aqui para me ver. Embora eu seja uma das meninas as pessoas só têm olhos para a infanta Margarita. Acho isso uma injustiça.

— O que posso dizer a seu respeito?

— O que você quiser. Desde que fale bem de mim. Você disse certa vez que iria escrever um livro sobre o Museu do Prado, explicando alguns quadros por ângulos diferentes daqueles que são conhecidos hoje. Fale de mim no livro, Jorge.

Ele estava atônito. Continuava sozinho na sala. Quando pensou em fazer outra pergunta apareceu um grupo de estudantes. As crianças se sentaram no chão para ouvir explicações de uma professora. Olhou novamente para o quadro e todas as personagens estavam em seus devidos lugares. Apenas Agustina, uma das meninas, se mostrava um pouco mais sorridente e com um dos olhos quase fechado, como se estivesse piscando para ele.

Enquanto se retirava do museu Jorge ouviu outras vozes de personagens de outros quadros sussurrando:

— Professor, não se esqueça de falar da Agustina. Ela é muito querida por aqui. Só o senhor poderá dar uma levantada no astral dela.

Ao passar pela porta recebeu um sorriso amigável de Rodriguez. Ele não estava com as roupas usadas pelos seguranças. Aproveitara seu horário de folga para investigar por conta própria o que ocorrera naquela noite. Jorge também sorriu. Esse era um segredo que jamais revelaria a ninguém. Ficaria para sempre entre ele e Agustina. E, claro, também com as personagens das outras pinturas, cúmplices da sua história.

Leia todos os textos da coluna de Reinaldo Polito em Vida Simples.


REINALDO POLITO (@polito) é mestre em Ciências da Comunicação, palestrante, professor nos cursos de pós-graduação em Marketing Político e Gestão Corporativa na ECA-USP e autor de 34 livros que já venderam 1,5 milhão de exemplares em 39 países. Sua obra mais recente é “Os Segredos da Boa Comunicação no Mundo Corporativo”.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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