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O importante é ter assunto
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A boa comunicação tem a ver com saber falar e ouvir, e sempre acompanhada do exercício da empatia

– Oba! Sente aqui e vamos prosear.

Era assim que Demétrio me recebia cada vez que eu passava para visitá-lo, coisa que acontecia mais do que meu tempo permitia e menos do que ambos gostaríamos.

Prosear era sua atividade preferida, pelo menos nessa fase de sua existência, quando ashistórias acumuladas já encheriam uma biblioteca, especialmente aquelas sobre as fases duras de sua vida, os momentos difíceis, a grande aventura de viver. E as histórias de Demétrio eram cativantes. Mais de uma vez ele contou sobre o dia em que recebeu a notícia de que havia sido selecionado para trabalhar na obra de uma estrada de ferro. Sua família era de  lavradores, mas ele tinha especial interesse por coisas mecânicas, o que o levou a fazer cursos e desenvolver ferramentas – isso o habilitou para o cargo.

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O único problema é que a tal estrada de ferro ficava um pouco longe. Certamente bem além de sua Galícia, e até das fronteiras do Império Austro-Húngaro, que, aliás, tinha recém-deixado de existir, depois da grande guerra. Foi informado que deveria ir de trem até Hamburgo, e depois tomar um navio. O lugar ficava na América do Sul.

Demétrio não titubeou. Estava na idade da aventura. Já tinha completado 18 anos e queria mesmo conhecer o mundo. Além disso, não eram poucos os que diziam que era melhor mesmo sair da Galícia, pois ali não havia futuro e, pior, a tensão da guerra estava sempre no ar. Havia notícias de que, apesar daquela guerra ter terminado, outra estava começando, entre ucranianos e poloneses, exatamente pela posse daquela região onde ele havia nascido e se criado.

A capacidade de conversar

A reação de seus pais foi de tristeza e incentivo, aquela combinação de sentimentos que só um pai e, principalmente, uma mãe, sabem sentir. Como impedir um filho de voar, de crescer e de procurar uma vida melhor? E como viver sem ele por perto?

A bagagem foi pouca. Uma calça, quatro camisas, um casaco grosso feito de lã tingido de azul, que era seu preferido. Mais um cachecol, um livro em ucraniano sobre mecânica de carroças, duas fotos… e só. Estava pronto para partir. Mas não antes das bênçãos, das lágrimas, das recomendações e dos desejos de sorte. E, claro, das promessas de escrever e de voltar.

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A viagem de trem para Hamburgo durou cerca de uma semana, com baldeações, e a de navio levou mais de um mês, com escalas que ele não lembra onde foram. A viagem não foi fácil, mas ele se saiu bem.

– O importante é ter assunto!

Essa era sua frase preferida, pois ele atribui à sua capacidade de conversar – ou prosear, em seu vocabulário –, ter encontrado solução para cada problema que teve na vida. No navio, por exemplo, ele ficou ameaçado de passar fome, pois não tinha levado mantimentos, e os fornecidos a bordo eram escassos. Pois ele resolvia sua carência se aproximando dos mais abastados, usando sua magnética capacidade de contar causos e demonstrar interesse pelos outros. Ele não tinha pão, mas tinha assuntos, e isso o manteve vivo.

Precisamos de assunto

Demétrio foi quem me fez entender o valor da comunicação integral, aquela que coloca as capacidades de falar e de ouvir à disposição do assunto, sempre acompanhadas pelo exercício da empatia. Demonstrar interesse pelos interesses do outro, e colocá-los dentro do contexto do assunto, é o caminho seguro para uma boa conversa, da qual podem nascer amizade, namoro, negócios, ajuda, colaboração… Ou a partilha de um pão a bordo de um navio de imigrantes rumo a um novo mundo.

Conheço pessoas interessantes, ricas em repertório, e outras que são aborrecidamente monotemáticas. Para estas, o assunto é sempre o mesmo, seja política, trabalho ou futebol. Além de enfadonhas, perigam tornar-se pedantes.

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Foi também com Demétrio que eu aprendi que, para conversar sobre determinado assunto, não é necessário ser um especialista, desde que não se tente passar por um. Essa é a primeira qualidade do bom papo. A segunda é demonstrar o desejo de aprender, fazendo boas perguntas.

Storytelling é uma expressão moderna, e se refere à arte de contar histórias de maneira inspirada, passando uma mensagem e tocando as emoções de quem nos escuta. Demétrio era um storyteller. Intuitivo. Ao contar como conheceu a menina Dária, irmã de um amigo seu, e que viria a ser sua esposa e grande paixão – além de mãe de seus dez filhos –, Demétrio acabava dando uma lição sobre relações humanas, sobre a beleza, o amor, o cuidado e até mesmo sobre a visão de futuro.

Precisamos de assuntos. Felizmente o mundo é cheio deles. Basta ter curiosidade, interesse, atenção e algum empenho. E assuntos apresentados em forma de histórias, então, são como manteiga passada no pão quente. Não tem quem não goste…

Eugemio Mussak já contou muitas histórias aqui na Vida Simples. Desta vez foi sobre Demétrio, seu avô proseador. @eugeniomussak

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