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A solidão pode ser bem-vinda
Gabriel | Unsplash
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É bom olhar para as contradições — as nossas e a dos outros. Antes da pandemia, havia uma espécie de fascínio pela solidão, principalmente nos grandes centros urbanos. A solidão era vista como uma arte perdida, inviabilizada pela sociedade tecnológica. Fosse por necessidade ou fuga, muitos sonhavam com um “tempo só para si”. Quem nunca pensou em atender o apelo de “parar tudo”? Quem nunca lançou mão da catártica ameaça “qualquer dia, eu sumo”.

E aqui não falo dos exclusivos sabáticos, templos de yoga ou a fuga dos românticos do século XVIII em direção à natureza. Nós, românticos pós-modernos, ansiávamos por oásis, por momentos de paz — mas dentro do mundo lotado. A ideia era ter um pequeno refúgio portátil em meio ao excesso de tarefas e aos ruídos tecnológicos. Muito mais acessível do que fugas para lugares distantes, queria-se apenas um espaço do dia para ouvir os próprios pensamentos. Mais do que uma válvula de escape, esse tempo era cobiçado como um medicamento ou um artigo de luxo.

Confinamento

Chega a pandemia e, junto com ela, a oportunidade esperada. E aqui a contradição. A solidão passou a ser imediatamente detestada. Seria por ser obrigatória? Pela falta de espaço físico para o “oásis”? Por ter chegado em doses cavalares? Ou porque o “estar só” veio contaminado pela estranheza que contemplamos da janela? É certo que todas essas razões atrapalham, mas talvez a razão pela qual a experiência da solidão tem sido dolorosa é porque não estávamos preparados para ela. Estávamos soterrados em estímulos. Além de estarmos ligados a todos os suportes da vida prática, tínhamos os nossos interesses, os interesses daqueles que nos cercavam e as muitas escolhas disponibilizadas pelo mundo lá fora. Quando a hiperestimulação cessou, ficámos em queda livre. Tivemos de olhar para nós e notamos que estávamos nus diante de nós próprios, sem saber o que fazer diante de perguntas como “quem sou eu”, “o que estou fazendo aqui” , “como consigo me entreter” , “como lido comigo mesmo”. Para a maioria, a chegada repentina dessas questões trouxe uma grande angústia.

É só isso?

O fator surpresa é um entrave legítimo, mas há mais razões. Primeiro é preciso que se diga que a solidão sempre teve uma conotação mais negativa do que positiva. Historicamente, ela sempre esteve associada ao isolamento social indesejado, ao tédio, ao ócio e até à punição. A criança indisciplinada tem como castigo o isolamento; o direito criminal pune o faltoso com o cárcere e, nos casos mais graves, com a “solitária”.

Apesar desse passado, nos últimos anos, houve um interesse crescente pelo tema. E já há vários estudos que documentam os aspectos positivos da solidão. Sabe-se, por exemplo, que ela pode ser benéfica, mas precisa ser aprendida ­— como qualquer outra competência —para ser devidamente desfrutada. Não basta a solidão, é preciso “aprender” o exercício da solidão.

E essa é uma descoberta valiosa, porque há quem esteja lamentando a solidão, mas não ficou um único minuto com ela. “Ah! Mas eu fiquei o dia inteiro ocioso, correndo de um aplicativo para outro, ouvindo música, lendo”… Isso pode ser muita coisa, menos solidão.  A solidão é um exercício de autorreflexão, é estar só com você mesmo. Isto é: é preciso reservar um período sem nenhuma ocupação. Não se pode navegar nas redes sociais? Falar ao telefone com amigos? Ler um livro? Não. Nenhuma atividade ocupante. Só assim pode ser considerado como solidão.

Eu comigo

Estudos da neurociência mostram que as pessoas que passaram pelo menos uma hora com elas mesmos — ocupadas com o exercício de atender aos próprios pensamentos e sentimentos — apresentaram muito mais níveis de satisfação (e menos pensamentos negativos) do que aqueles que navegaram nas redes sociais. Sim: é por essa razão que ao fim de um dia de distrações pulverizadas você se sente frustrado, entediado e com a sensação de mãos vazias.

Mais um pré-requisito: essa autorreflexão precisa ter qualidade. Não adianta usar o tempo com você mesmo para ruminar impasses, arrependimentos e pensamentos negativos. É um momento de estar com você mesmo de forma autêntica e verdadeira. É um pensar ativo onde se controla — e seleciona-se — o fluxo de pensamentos. É verdade que não é um exercício fácil e muitos abandonam a experiência pior do que quando iniciaram. Porém, deve-se insistir. Experimente: é uma questão de treino. Se você iniciar o processo e se der conta de que se soltaram todos os demónios do seu inconsciente… Pare (lembre-se que é você que está no controle) e procure um amigo de confiança — por voz ou mensagem escrita — e converse. Retome o processo no dia seguinte.

Não há o que temer     

Essa prática pode ser muito difícil para quem nunca tenha se sentido atraído pela solidão. A maioria tem gravado no peito a obrigação da agenda preenchida. Há culpa pelo desperdício de tempo e acredita-se que a cabeça desocupada consiste numa espécie de perigo. Parte desse desconforto vem da moldura capitalista — que diz que você precisa ser sempre produtivo ­— e da cultura judaica-cristã que diz que “cabeça vazia, oficina do diabo”, que quando estamos desocupados, o demônio ocupa-se por nós.

Como lidar

Voltando à nossa realidade, é óbvio que o exercício da solidão fica mais difícil no caos global da pandemia. Estamos danificados, numa resiliência fatigada, com dificuldade de olhar para nós, diante do caos que avistamos da janela. Porém, essa é mais uma razão para o mergulho em nós mesmos. Precisamos admitir que estamos por um fio e precisamos cuidar de nós mesmos. Precisamos reunir forças e lançar mão do sábio mandamento estoico que diz para nos ocuparmos apenas daquilo que depende da nossa vontade. Se não temos o poder de alterar o cenário, podemos mudar o nosso olhar sobre ele. Ao invés de praguejar contra a tempestade, podemos evitar o cansaço inútil de lhe fazer oposição.

Olhar para dentro

Podemos tirar o foco do mundo lá fora e aproveitar a “oportunidade” para o exercício de nós mesmos. Há quem esteja em negação, há quem tenha desejado hibernar e só acordar (com a mesma idade) quando toda essa loucura passar. São posturas que desperdiçam tempo e energia. Porque não será possível continuar de onde paramos. Já não somos os mesmos e não voltaremos a ser. E não, a pandemia não nos tornará melhores. Ela não é um portal que vamos atravessar e sair melhores do outro lado.

Estamos passando por um momento dificílimo e traumático da história e vamos sair feridos e enfraquecidos. Mas podemos aproveitar esse tempo de reclusão para amenizar os estragos, fazer ajustes e construir barreiras de proteção. E, sobretudo, devemos aliviar a sobrecarga cognitiva que pesa sobre nós para manter intacta a nossa capacidade de criar, planejar, inovar, tomar decisões, lidar com conflitos, gerir emoções e, principalmente, fazer planos para o futuro. Um futuro que precisará de toda a nossa força.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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