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A história do primeiro livro que comprei
Freddie Marriage | Unsplash
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Neste artigo:

Penso no primeiro livro que comprei com o meu dinheiro. Tinha dezasseis anos. Estava no décimo ano de escolaridade, numa escola pública, com apoio social para livros e alimentação. Tinha direito a senhas de almoço, que a Andreia levantava por mim. Ela fazia-o de bom grado. Ou para me agradar como quem o faz a um namorado. Nunca a percebi. O certo é que a Andréia nunca me cobrou o favor e eu nunca a questionei se o fazia por amor.

Durante quase um mês, senti fome na escola. Foram longos minutos difíceis de suportar no avanço da manhã até a hora do almoço, sobretudo no intervalo grande, quando me via forçado a representar de cada vez que um colega ou uma colega me levava ao bar, insistindo,

— vá lá, meu,

sem se aperceber da razão da minha recusa,

— ‘bora, Didier,

sobretudo nos dias em que eu não levava um lanche de casa

— vem, meu amigo,

e ficava a vê-los comer, tanta gente satisfeita, eu com a barriga a corroer de vontade. Na maioria das vezes, inventava desculpas para me escapar do cheiro do pão com chouriço aquecido, da visão do queque ou do caracol com frutos secos — o meu bolo preferido —, enfim, da tentação, apenas porque queria comprar um livro.

Percorria a Avenida Dom Afonso Henriques, em Almada. Tinha o hábito de descer do autocarro na Praça São João Batista e fazer a pé o caminho dali até à escola. E o inverso também, a meio ou ao final do dia. Gostava de ver as pessoas. Sentir o movimento dos corpos roçagando uns nos outros, alguns ligeiros, outros brutos, pé ante pé, o som dos tacões nos meus ouvidos.

Um feliz acaso

Por razões que ainda hoje desconheço, gosto de me mover por ruas agitadas como se estivesse completamente só. Com headphones sobre as orelhas. Sem música. Um falso silêncio ao meu lado. Ruídos. Vozes. Tudo abafado. Nos rostos, sinais. Uma vida desagradável. Cansaço. Irritação. Nostalgia. Alegria. Tão poucas vezes felicidade. Porque vivemos enclausurados, apertados uns contra os outros, e eu sinto-me bem passando por invisível.

Naquele dia, o homem corpulento caminhava na minha direção. Levava o passo rápido e os movimentos embrutecidos. Esbarrava nas pessoas sem se desculpar. E eu, menino ainda franzino, afastei-me antecipadamente com medo de receber um encontrão que me magoasse. Parei. Encostei-me à montra. Fingi que a observava. Foi então que vislumbrei na capa de um livro exposto sobre uma pequena estante, a imagem de uma gaiola com um ser humano dentro, em pé, sobre um livro vermelho e outros mais ao seu lado, com folhas rasgadas caindo para um fundo de nada, talvez dentro, talvez fora da prisão. Franzi o sobrolho direito.

Busquei o título grafado no alto. Li “Vivemos Livres Numa Prisão”.

Vivi os dias que se seguiram com o desejo intenso de obter aquele livro. Não sabia porquê. Apenas que o teria de ter comigo. Acompanhando-me com as mais sábias respostas às minhas indagações. Por isso descia todos os dias na paragem mais próxima da livraria. Parava alguns segundos diante da vitrine. Contemplava o livro, apaixonado.

Desculpas, quando a fome não mata

Não me mataria a fome, sabia-o. Esperava sairmos de casa, eu e a minha mãe. Fazíamos a pé o percurso até a paragem do autocarro. Ali, esperávamos um pouco que chegasse. Entrávamos. E só depois, como que subitamente lembrando, dizia-lhe,

— esqueci o lanche em casa,

ou,

— no outro dia, um colega emprestou-me um euro para lanchar, porque eu não tive tempo de preparar em casa. E hoje também não tenho nada para comer. Dás-me dois euros, por favor?

Outras desculpas inventava para pedir dinheiro à minha mãe. Moedas que lhe custavam tanto a ganhar e que eu amealhava secretamente em casa. Nessa altura, passávamos grandes dificuldades. A minha mãe trabalhava de manhã à noite. Tinha dois empregos e, mesmo assim, parecia não chegar para alimentar sozinha quatro filhos menores. Pedir-lhe dinheiro para comprar um livro soava-me tão estranho como pedir comida para, de seguida, a deitar ao lixo.

Mas, aquele livro, aquele “Vivemos Livres Numa Prisão”, aquele homem na gaiola, tudo me fazia tanto sentido que não o conseguia ignorar. Precisava daquele livro.

Duas semanas, foi quanto tempo demorei para juntar a quantia necessária para comprar o livro. Nessas duas semanas, notei como a Andreia era particularmente importante para mim. Como que uma extensão da minha mãe dentro da escola, totalmente livre das suas preocupações, sem ter de me dividir com os meus irmãos, todos eles mais novos do que eu. A Andreia cuidava de mim nos intervalos das aulas. Chamava-me para estar perto dela. Ou vinha sentar-se ao meu lado, com o seu lanche que todos os dias parecia ser demasiado para si. Então ela dizia-me

— toma, come tu o resto, estou cheia,

recusando qualquer evasiva da minha parte (a Andreia era uma menina autoritária no trato). Ou, com modos brandos,

— fica com metade, a minha mãe tem a mania de me encher a lancheira de comida.

Finalmente, o meu livro

Finalmente posso entrar na livraria. Dormi pouco. Dormi mal. Agora caminho cansado pela avenida principal da cidade. Mas faço-o triunfante. Que nem o último soldado sobrevivo atravessando a fronteira para dentro da sua terra, roto, esfomeado, sorrindo, sorrindo muito apesar de tamanho esforço e sofrimento passados. Sinto-me vencedor. Numa marcha lenta, desfruto cada passada. Vou no meu caminho. Com o meu dinheiro. Quinze euros e mais uns trocos.

Paro diante da livraria. Desta vez à porta. Desço dois degraus. Cumprimento o livreiro,

— bom dia,

e sigo em direção à pequena prateleira

— bom dia

onde o meu livro ainda está exposto. O homem acompanha-me os passos como se fosse uma sombra. Aproxima-se muito de mim e, sobre o meu ombro esquerdo, diz

— é esse que procuras?,

uma vez que o tenho já nas mãos. Folheio rapidamente. Levo o nariz ao papel. Tem um cheiro estranho. Mas, agradável. Com o homem praticamente colado a mim. Sinto-lhe o cheiro. Sinto-lhe a presença. Viro a cara sobre o ombro e respondo, sorrindo,

— sim, é este.

O livreiro afasta-se um pouco. Dá-me as costas. Acerca-se de uma estante alta. Levanta o braço. Vejo como estica os pés, ficando só com a ponta dos sapatos no chão, alcança um livro, que traz consigo ao recuar para a sua forma e tamanhos normais. O velho olha-me, tirando-me as medidas de cima a baixo. Diz

— tens a certeza, rapaz, que é mesmo este livro que procuras?

Reafirmo que

— sim, é este,

sem compreender exatamente a dúvida presente no rosto do homem, que me lança,

— é para a escola?

Não, não é para a escola, expliquei. Simplesmente atraiu-me muito o título e a capa. Não sei do que trata. Não conheço o Daniel Sampaio que o escreveu. Apenas fiquei atraído por ele, concluí.

Talvez pela minha ingenuidade denunciada ou pelo constante sorriso rasgado na cara, o comerciante recua até ao balcão, coloca-se por detrás dele e, pousando lentamente os cotovelos, os antebraços e as mãos com os dedos entrelaçados sobre o vidro, confessa-me ter desconfiado da minha presença.

— Vê bem, rapaz, passavas por aqui todos os dias, paravas, olhavas para dentro da loja e depois ias embora. Epá, nunca pensei que alguém como tu

— como eu?

— estivesse só interessado num livro.

— Disse, alguém como eu. O que quer isso dizer?

— Epá, não me leves a mal, mas, tu és de cor, as pessoas da tua raça não costumam comprar livros, quando olham para a vitrine, com insistência, epá, normalmente é para topar se há dinheiro na caixa, percebes, meu rapaz? Mas, diz lá, qual é o tema que procuras? Sabes que esse livro é sobre a anorexia?

Fico confuso. Por uma lado, percebo que o senhor me tomou por ladrão, coisa que me incomoda demais para o fazer. Penso na minha mãe. Em como ela tem-se esforçado tanto para termos qualquer coisa para comer, sobretudo aos fins de semana, quando não almoçamos na escola. Ocorre-me que, em abono da verdade, este livro é dela. O dinheiro que trouxe no bolso e que agora brilha no balcão desta livraria é o fruto do seu esforço. Seria melhor empregue na caixa da mercearia, a troco de pão, carne, ovos, arroz.

— Peço desculpa, mas não o posso levar. Esse dinheiro vai fazer mais falta à minha mãe.

O vendedor olha para mim, estupefacto, sorridente agora. Procura os meus olhos molhados de água. Estende-me a mão com o livro, dizendo,

— epá, toma, leva-o contigo,

— não…

— há tanto tempo, pá, que o tempo à mostra e não vendi um único exemplar. Toma ofereço-to. Leva-o p’ra casa e, se gostares, depois compras outro, pode ser?

— Sim.

Saio da livraria. Caminho para a escola, contente por alguém como eu ter recebido um prémio tão valioso como este. E, com o livro na mão esquerda e a direita no bolso, sigo sentindo a texturas, as temperatura, o peso tanto do livro como do dinheiro entre os meus dedos. Penso na Andreia. Quase corro. Quero muito chegar à escola e, antes das aulas começarem, prometer-lhe que hoje eu ofereço o lanche do bar, o que ela quiser.


Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:

dezasseis: grafia local para dezesseis.

queque: receita tradicional de um bolinho de formato semelhante a um muffin ou cupcake.

autocarro: ônibus.

montra: vitrine.

sobrolho: sobrancelha.

estupefacto: grafia local para estupefato.

prémio: grafia local para prêmio.

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*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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