A caderneta da Dona Maria
O hábito de vender fiado, a caderneta, é uma prática antiga, mas a confiança e a generosidade destes tempos ainda encontramos aqui e ali, mesmo nas grandes cidades.
Uma postagem de Ricardo Amorim, no LinkedIn, chamou a atenção e sensibilizou os seguidores: “Que bela iniciativa da Padaria Líder, de Araçatuba, interior de São Paulo”. Em seguida aparece a foto com uma cesta e alguns sacos com pão. Na frente, uma placa com a seguinte mensagem: “Se hoje você não tiver dinheiro para comprar pão, pode retirar o seu aqui. E no final, uma mensagem de esperança: Deus te abençoe.
Tomara que a moda pegue. Fiquei pensando: quantas pessoas levariam os pães? Seis, dez? Que fossem vinte. Para o proprietário da padaria, em termos de valor, significa nada. Para quem precisa dar o que comer aos filhos, tudo.
Essa pandemia tirou o emprego de muita gente. Pessoas honestas, que sempre trabalharam, mas de uma hora para outra se viram sem condições de levar o alimento para a família.
O desemprego
Um homem ou uma mulher levanta pela manhã, olha para os olhos de quem vai ficar cuidando dos familiares e vê uma espécie de súplica, para que retorne ao lar com a boa notícia de que finalmente conseguiu encontrar emprego. À tarde, sem que precise pronunciar uma única palavra, quem esperou entende, pelo semblante desalentado, que a história de todos os dias se repete.
Sem contar a vergonha de estar desempregado e ter de encarar os vizinhos. Nem sempre o auxílio emergencial supriu as necessidades das famílias. Nessas situações, aqueles pães podem se transformar em motivo de alegria e renovação de esperanças.
O casal Dona Maria e Seu Luiz
Essa iniciativa do proprietário da padaria me fez lembrar de como os pães eram comercializados nos anos 1950/60 em Araraquara. A padaria da Dona Maria ficava na Rua dois (Araraquara tem essa mania novaiorquina de denominar as ruas pelo número), na esquina com o Jardim Primavera, onde hoje está instalada uma agência bancária.
O casal Dona Maria e Seu Luiz eram os donos da padaria e responsáveis pelo atendimento. Craques! Conheciam todos os clientes pelo nome. Quando minha mãe ou minha avó chegavam para comprar nem precisavam pedir. Já sabiam a quantidade exata para pôr no saco: “Ecco, os seus pãezinhos, Dona Joana. Mais alguma coisa para hoje?”
A caderneta ficava com o cliente
Pegavam a caderneta e marcavam à mão o valor dos produtos. E com o sorriso simpático e amável de sempre diziam: tenha um bom dia! A caderneta ficava em poder do cliente com os valores registrados. No final do mês, quase sempre, sem um dia de atraso a dívida era saldada. E, se, por acaso, alguém não pudesse quitar, jamais passava pelo constrangimento de ser cobrado. Pagava o que podia. No mês seguinte talvez a situação melhorasse. Era uma prova de confiança como dificilmente se vê hoje.
O pacote de bolachas para quem pagasse
Havia uma distinção para aqueles que, embora com atraso, zeravam o saldo. Recebiam de presente um pacote de bolachas. Se pensarmos em valores, aquele brinde era uma insignificância, assim como os pães deixados no cesto lá em Araçatuba. Embora o regalo não representasse nenhum valor expressivo, era uma espécie de troféu para o cliente que honrava seus compromissos.
Alguém poderia perguntar: e se a pessoa tivesse dinheiro para comprar os pães em Araçatuba ou pagar a conta na Dona Maria, e não pagasse? É possível responder com outra pergunta: que motivo teria alguém para agir assim? É como se dissesse para si mesmo: ei, amigo, não mereceu a confiança que depositaram em você. É esse exemplo que pretende deixar para os seus filhos?
Saldar as dívidas
Nunca soube de uma pessoa que tivesse deixado de honrar a caderneta da Dona Maria. Alguns pagavam só um pouquinho todos os meses, mas, no fim, quando haviam solucionado seus problemas, a primeira decisão era a de saldar o que deviam.
E saiam da padaria ostentando o pacote de bolachas, como se dissessem: sou uma pessoa honesta. Cumpro com as minhas obrigações.
A Dona Maria e o Seu Luiz já não estão mais lá. A padaria também fechou as portas. Os exemplos que deixaram como ensinamento, entretanto, jamais desaparecerão. Os tempos são outros, mas as pessoas são, por natureza, as mesmas. Todos nós gostamos de ser tratados pelo nome, com respeito, amabilidade e consideração. O mundo é habitado por pessoas honestas, não podemos julgar nossos semelhantes pelas exceções.
Pois é, o cesto de pães de Araçatuba e a caderneta da Dona Maria, que deixou tanta saudade, são uma grande lição de vida.
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