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Vidas que se cruzam
Dariusz Sankowski (Unsplash)
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Neste artigo:

 Salvar histórias de viagem das garras do esquecimento é uma forma de nutrir a alma até que possamos viajar novamente.

Havia algo de semelhante entre algumas vizinhanças brasileiras e a área de Shatila, no Líbano. Estruturas precárias, pedestres e carros se misturando, moradias empilhadas e um tanto de gambiarras. Shatila nasceu em 1949 como um campo para acolher refugiados vindos da Palestina, após a ocupação israelense. No dia da minha visita, Shatila já era praticamente uma cidade de palestinos, vivendo em situação instável e sem pátria, estabelecida dentro de Beirute, a capital libanesa. Eu fazia uma visita de observação. Sozinha, sem aviso nem encontros previstos. Sentia-me observada quando, por acaso, o avistei. Vinha caminhando na direção contrária… Era ele, sim! Doutor Al-Jatib. Conferi. Careca, moreno, gordinho… Passou por mim. Então me virei, trocando a direção e querendo tocá-lo nos ombros e me apresentar. Ensaiei a frase, estiquei o braço e… segurei o ímpeto. Já era observada por mais de uma pessoa. Desisti e retornei ao bairro onde me hospedava.

O conflito

Do outro lado da cidade, Michel me acolhia em sua pensão familiar. O lugar ficava próximo a uma avenida que, segundo me contaram, serviu de linha divisora entre cristãos e muçulmanos, durante a complexa guerra civil libanesa (1975 -1990). Não tenho certeza se a separação era assim tão definida ou se Beirute se dividia irregular como um quebra-cabeças. Começava com o Líbano sendo uma colônia francesa anexada à Síria, que não reconhecia a independência libanesa. E explodia com divisões étnico-religiosas internas que tornavam impossível saber quem mandava na coisa toda. Tudo isso numa região onde a presença dos palestinos escancarava questões mal resolvidas e o conflito entre árabes e israelenses era histórico e constante.

O prédio da pensão de Michel ainda tinha buracos de bala — assim como quase todas as paredes da vizinhança. Poucos metros dali, um bairro reconstruído sediava missões diplomáticas e departamentos da Organização das Nações Unidas. Nenhum sinal da cidade mediterrânea, apelidada antes da guerra de Paris do Oriente. Sem muita intimidade com a intrincada história da região, preferi esquecer a razão de ter vindo ao Líbano e ir embora. Mas no trajeto acabei conhecendo Juliana e Douglas, jornalistas brasileiros em férias. Eles insistiram para que eu não colocasse um ponto final no meu fascínio pelo Líbano nem na história sobre aquele homem com quem cruzei em Shatila.

vidas que se cruzam

Daniel Schludi (Unsplash)

Acaso ou destino

Quando eu era criança, encontrei em casa uma revista contando a história do campo de Shatila e da guerra libanesa. Anos mais tarde, li num jornal estrangeiro a jornada heróica de um homem que teria salvado centenas de pessoas na ocasião de um terrível ataque ao campo, em 1982. Terminei de ler sobre o Doutor Al-Jatib e fui ao Líbano simplesmente pela paixão por história e pela vontade de ir além da leitura. Foi quando o acaso o colocou na minha frente, naquela visita ao campo.

Juliana e Douglas, caçadores natos de boas histórias, me acompanharam novamente a Shatila, onde descobrimos um centro de convivência para manter os jovens locais longe de encrencas. Ali fizemos amigos, e eles nos levaram ao Doutor Al-Jatib. O homem me abriu as portas da casa onde vivia com a esposa. Serviu o café forte do Oriente, contou sua trajetória e me presenteou com pequenos livros de poemas de sua autoria. Mohammed al-Jatib chegou ao Líbano aos 6 meses no colo dos pais, vindo de uma Palestina que nunca conheceria. Tornou-se médico em Cuba e passou a vida servindo refugiados palestinos em um hospital patrocinado pela ONU, em Shatila. Após o café com o doutor, decidi ficar. Juliana e Douglas seguiram viagem.

Nada fácil de entender

Pelos próximos dois meses, eu passei a sair da pensão de Michel pela manhã, atravessar parte de Beirute a pé e tomar uma van velha até Shatila. Lá, eu promovia conversações em inglês apresentando a vida na perspectiva de uma brasileira.

No caminho diário, eu tentava desvendar o mosaico que é Beirute. Atravessava bairros simples com pequenos comércios e áreas residenciais requintadas. Não me recordo de um só quarteirão livre de marcas de guerra. Na ida, eu cruzava a Universidade Americana de Beirute, um McDonald’s e lugares servindo café Illy e bagels – os pãezinhos em forma de rosca cultuados nos Estados Unidos. No fim da tarde, eu voltava me embrenhando por outras ruas e matava a fome com pão-folha, queijo, zatar e hortelã fresca numa lanchonete qualquer.

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Ian Schneider (Unsplash)

História cruzadas

Em Shatila conheci gente do mundo todo, mas especialmente voluntários escandinavos atuando por meio de ONGs internacionais. A maioria vinha ao centro de convivência para dar aulas de reforço aos jovens do campo. Ane, da Noruega, estudava Relações Internacionais, perdera o pai na infância. Ele trabalhava com exportações, viajava de avião quando a aeronave sumiu dos radares nos anos 70. Então ela cresceu num colégio interno vizinho — vejam só! — à casa onde morei na Suíça.

O norueguês Rune vivia como uma asceta, era disléxico e queria ajudar pessoas como gratidão por ter tantos privilégios. Sofria de amor por uma voluntária que já partira, a sueca Ingrid — que conheci semanas antes numa pensão de Damasco, na Síria. Hanadi, filha de um ex-diplomata iraquiano, dava aulas de informática. Ela tinha o costume de nos contar, com certo humor, sua rotina de criança no Iraque durante a guerra. Hanadi conhecia o endereço dos melhores doces de Beirute.

Aprendizados

Junto com o crânio Walid, o galã Salah e o doce e franzino Ahmed, rapazes de Shatila, formamos a turma mais legal do campo naquele tempo. Frequentamos as casas uns dos outros, éramos bem vindos para as refeições e festas em família. Passeávamos por Beirute, íamos ao cinema e agitávamos as aulas de conversação. Seguíamos aprendendo sobre as histórias e cicatrizes de quem vivia sem uma pátria para colocar num passaporte e sem oportunidades para construir uma vida além da que levavam dentro de Shatila. As condições para os palestinos no Líbano nunca foram fáceis.

Fora do campo, Michel, o da pensão, discretamente zelava por mim. Ensinou-me a fazer quibe e disse-me que esfiha é uma invenção da nossa cabeça. Explicou-me que em Beirute, moradores de bairros diferentes não se frequentavam — o que me levava a olhar as fronteiras invisíveis da cidade com o cuidado de uma viajante humilde. Quando estava na pensão, seu pai me preparava café e ovos mexidos temperados com canela.

Despedidas 

Na véspera da minha partida, os rapazes palestinos aparecerem na pensão de surpresa dando adeus e chocando Michel, que os recebeu cordialmente. No dia seguinte, me despedi dele com um aperto de mão e fui embora. Antes que eu terminasse de descer o último lance de escadas da pensão, Michel me alcançou e ofereceu um longo abraço. “É assim que nos despedimos dos amigos no Líbano”.

No dia 4 de agosto de 2020, pela tela do celular assisti a uma onda de energia invisível atingindo Beirute e arrasando a cidade — incluindo a área da pensão onde morei. Era uma explosão. Beirute no chão mais uma vez. Cerca de 15 anos após minha passagem por lá, Michel é pai e vive com a família no Canadá. Ane é funcionária de campo da Cruz Vermelha — não tem ponto fixo e nem tempo para responder às minhas mensagens. Juliana agora é chefe da seção asiática de uma grande rede internacional de notícias. Eu nunca soube dos outros.

Recentemente, li que doutor Al-Jatib reuniu peças que famílias palestinas carregaram consigo após décadas de deslocamento. Com elas, montou o pequeno, porém grandioso, Museu de Memórias da Palestina. Doutor Al-Jatib terminou seu trabalho como cuidador de pessoas. Tornou-se um cuidador de histórias. Ele existe. E eu o conheci.


JULIANA REIS é uma viajante em busca de histórias, pessoas, lugares e experiências que a modifiquem. @viagenstransformadoras

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