Vida no campo: o que a natureza nos ensina sobre ter paz
Como explica a colunista Maria Dolores, acreditar na vida tranquila no campo é desconhecer a luta incessante de tudo o que é vivo e luta por assim permanecer.
Pego minha xícara de café e me sento debaixo da mangueira, com a cabeça na sombra e o resto do corpo no sol. É o meu lugar favorito no sítio, sobretudo no início da manhã, com o restante da família dormindo, a grama ainda molhada pelo orvalho e o sol, gentil, a me envolver num abraço. Enquanto a casa permanece em silêncio, eu observo do lado de fora a vida acontecer.
Eu tinha uma ideia errada do campo até virmos para o sítio. No meu imaginário de quem vivia em um apartamento no coração de São Paulo, a natureza era a calma e tranquilidade em estados puros. Mesmo a infância e adolescência passadas no interior me ajudaram a criar e a fortalecer esse imaginário. Embora morasse em uma cidade pequena, minha rotina não ia muito além dos limites urbanos. Mas a natureza não é calma, nem tranquila.
Uma imagem errada sobre a vida no campo?
Sentada na minha cadeira trançada, eu acompanho o joão-de-barro trabalhar no segundo andar da sua casa. Por algum motivo, em vez de aproveitar a mesma morada ele constrói outra em cima. Deposita o conteúdo com o bico, voa, desaparece por uns instantes e retorna com o bico cheio, num vai e vem incansável, suportando as dezenas de maritacas que chegam todas as manhãs nessa mesma árvore, um grande e velho eucalipto.
Eu achava que eucaliptos eram árvores altas e finas, como nas plantações que a gente vê pelas estradas. Mas um eucalipto, se deixado a crescer com espaço e tempo, se alarga e se expande, com tronco grosso e galhos longos e tortos, formando uma copa generosa. Como esse diante de mim. As maritacas atingem o ápice do alvoroço, combinando sei lá o quê entre si. Terminada a assembleia elas partem. Retornam no fim da tarde para o mesmo lugar, a mesma muvuca, provavelmente a repassar as metas alcançadas e as alcançar.
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Enquanto me distraio pensando na vida das maritacas, uma carreira de formigas ocupa o tronco da mangueira, em organizadas duas vias. A de ida, em ritmo constante. A de volta, irregular, com a formiga da frente atrapalhando o fluxo ao deixar cair um pedaço de folha. E outra, atrás, trazendo uma espécie de graveto que obstrui o caminho das que levam provisões mais adequadas aos seus tamanhos. Olho mais acima e vejo os canarinhos no ninho, mãe e pai se revezando na busca de alimento para três bicos pequeninos que se abrem antes mesmo de vê-los chegar.
Ao lado, as abelhas arapuás investem contra o pequeno pé de flamboyant que tem resistido bravamente desde o ano passado, recuperando o vigor quando pensamos ter desistido de lutar. Duas libélulas disputam o ar, enquanto o beija flor ronda o manacá e o carcará dá um, dois, três rasantes até pegar o que veio pegar. E eu, sentada, acompanho exausta.
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A natureza não para. Cada um trabalha de forma incessante pela sobrevivência, sua e dos seus. Ela não é calma ou tranquila. Eu diria discreta. E talvez esteja aí o segredo.
A tranquilidade não está em fazer nada. Mas em fazer tudo o que precisa ser feito, no seu tempo, na sua medida, com discrição. Sem precisar de palco e holofote.
Com ciência de que algumas coisas podem estar sob controle, mas a maioria não. A maioria gira por si só, seja lá qual for o nosso querer.
Continuar a sobreviver e a fazer o que precisa ser feito, mesmo diante da impossibilidade de controle e aplauso, é alcançar a paz que a gente espera encontrar na natureza.
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