Use sua insatisfação a seu favor
Desconfortável e às vezes angustiante, esse sentimento também pode nos ajudar a trazer soluções novas e a buscar conquistas que tragam mais sentido para nós
Desconfortável e às vezes angustiante, esse sentimento também pode nos ajudar a trazer soluções novas e a buscar conquistas que tragam mais sentido para nós
“Obrigado, estou satisfeito!” Essa frase, acompanhada de um meio sorriso e de mãos espalmadas em direção à outra pessoa, costuma ser usada quando, já saciados, recusamos mais comida que alguém está nos oferecendo.
Estar satisfeito tem, então, o significado de não querer mais, de rechaçar uma oferta, de abrir mão da oportunidade de aumentar a posse de um bem. No caso, de mais comida, mesmo sabendo que essa satisfação será temporária.
Analisemos melhor essa questão: ao recusar o segundo prato você está sinalizando que já comeu o suficiente ou que não quer comer mais? Pode parecer a mesma coisa, mas há uma diferença sutil entre as duas possibilidades.
Talvez você não queira mais por já ter comido muito, uma vez que a comida estava deliciosa. Mas talvez você não queira mais porque não gostou. Dessa forma, o “estou satisfeito” pode ser sincero, ao sinalizar que seu corpo e seu prazer já foram convenientemente atendidos, ou pode ser apenas uma força de expressão, pois na verdade você está mesmo é insatisfeito com o que está recebendo e, portanto, não quer mais.
Essa pequena reflexão nos leva a outra, ligada com a essência da satisfação em si mesma. O que seria isso? A satisfação é uma coisa boa a ser perseguida? A insatisfação é, necessariamente, ruim? O que significa estar satisfeito? Vejamos, pois. A palavra satisfação, de origem latina, integra dois conceitos em sua estrutura. Satis significa bastante, suficiente, ou em quantidade adequada. Facere tem o sentido de fazer, realizar, ou atingir um objetivo. A etimologia, que sem- pre nos socorre, coloca a satisfação em uma ótima perspectiva. Deixa claro que a satisfação não vem apenas com o que conseguimos, mas também com a maneira como conseguimos.
Eu fico realmente satisfeito quando consigo o que desejo através de minha atitude em relação a meu objetivo. A verdadeira satisfação tem a ver, então, com movimento, com realização, com trabalho. Isso explica por que pouco valorizamos aquilo que conseguimos sem esforço, gratuitamente, como mero regalo da vida. Gostamos mesmo é do que conseguimos a partir de nossa intenção e de nossa ação.
Estar satisfeito, por outro lado, pode colocá-lo em uma situação de imobilidade. Eu me movimento para alcançar o que desejo e, uma vez atingido o objetivo, tal movimento perde sentido, eu então paro e me acomodo. Pessoas satisfeitas correm o risco de estacionar na vida, pois já têm o que desejam, o que nos leva a outra discussão, que é nossa relação com o desejo.
Uma das vertentes, com o amparo da filosofia, relaciona desejo com amor. A lógica é que amamos o que desejamos, o que coloca o amor como algo volátil, que desaparece após o obtermos. Mas vamos com calma, pois essa é apenas uma das vertentes do amor, o Erótico, o mais comum e primitivo. Os outros seriam o amor Philos, fraternal, e o Ágape, o mais elevado, o afetivo, universal e desprovido de interesses.
A satisfação é um prazer transitório e necessário.
A insatisfação é desconfortável, às vezes angustiante, mas também é necessária, e é do movimento dessa gangorra que tiramos nossa essência
O amor Erótico é o amor pela posse, pela conquista, e que vale não apenas para o amor por outra pessoa mas também pelas coisas, por tudo aquilo que desejamos obter e possuir. Ele, claro, encontra sua essência em Eros, cujo nascimento parece explicar tudo.
Os deuses estavam reunidos nos domínios de Zeus, em festa, para comemorar o nascimento de Afrodite, que seria a deusa da Beleza. Havia música, alegria, comida e bebida, e entre os mais alegres estava Poros, o deus da Riqueza. Embriagado, saiu para os jardins de Zeus, buscando sossego e ar puro. Espiando pela janela estava Pênia, a deusa da Pobreza, magra, curvada e andrajosa. Ao ver Poros sair, teve a ideia de seduzi-lo e conseguiu que ele a fecundasse, pois queria ter um filho que, ao ser filho da riqueza, também fosse rico e poderoso. O filho gerado a partir dessa união furtiva recebeu o nome de Eros, que, ao crescer, transformou-se, ele mesmo, em um deus muito especial: o deus do Amor. O amor é, então, filho da riqueza e da pobreza. Por isso é satisfeito e insatisfeito ao mesmo tempo e oscila entre esses dois extremos o tempo todo, na busca incessante de sua completude, que nunca poderá ser atingida.
Esse é um dos clássicos da mitologia grega, que, como sabemos, é muito rica em elementos que nos ajudam a entender a essência humana. Não por acaso, a mitologia foi uma das principais fontes de inspiração de Freud, especialmente quando ele se deparava com alguma lacuna teórica para explicar seus conceitos.
O amor erótico seria, então, o amor do desejo, e este, como sabemos, se extermina quando se completa. Em outras palavras, só desejamos o que não temos, pois, quando obtemos o que desejávamos, perdemos a justificativa para o desejo. Pode parecer paradoxal, mas não é. Faz sentido e pertence à qualidade humana da insatisfação, que se, por um lado, é causa de ansiedade, por outro, é origem de progresso.
Voltando à satisfação, vale lembrar o que disse o escritor Guimarães Rosa sobre o assunto: “O animal satisfeito dorme”, sintetizou. Nessa curta frase, o mineiro, aliás autor do longo Grande Sertão: Veredas, define a satisfação como um bem tão precioso, capaz de gerar serenidade, conforto e, como consequência, sono. Mas também alerta para o fato de que o animal que dorme torna-se vulnerável, uma vez que perde o estado de alerta, necessário à sobrevivência no ambiente perigoso da natureza.
Devemos, então, viver insatisfeitos para nos mantermos vivos? Esse é um tema recorrente em ambientes empresariais, nas escolas de negócio, nas denúncias da imprensa sobre os desmandos políticos. A insatisfação – dizem – mobiliza, energiza as ações diversas, promove mudanças, conquistas e, consequentemente, realizações. Somos animais insatisfeitos por natureza, o que não apenas nos manteve vivos até aqui como promoveu nossa evolução e nosso progresso. A satisfação é um prazer provisório, transitório, e é também necessário. A insatisfação é desconfortável, às vezes angustiante, mas também é necessária, e é do movimento dessa gangorra que tiramos nossa essência.
Era isso por hoje. Espero, sinceramente, que a satisfação gerada pelas ideias deste texto só dure até que surja a expectativa pelo próximo. Assim continuaremos juntos…
EUGENIO MUSSAK ama escrever, já se aprofundou em muita coisa, mas se diz insatisfeito com seus textos
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login