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Uma viagem no frio com uma desagradável surpresa
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Confesso a minha dificuldade em perceber as pessoas que fumam. Não vejo uma única vantagem. E são muitas as contrariedades. Mas isso seria da vida de cada um, se fumar não afetasse diretamente o bem-estar de outros.

Vejo uma mulher sentada bem diante de mim. Ao frio. Sozinha. Tomando o seu cafezinho da manhã. São 9:17, diz-me o relógio. Hoje o dia está extraordinariamente arrefecido. Dois graus, marca o termómetro. E ela ali está, com as luvas pretas calçadas, o cigarro com uma boquilha presa entre os dedos indicador e médio, a xícara do café espresso entre o anelar e o polegar. Noto como transporta lentamente o pequeno recipiente aquecido à boca, sorvendo o líquido em goles curtos e rápidos, com dificuldade. Treme-lhe a mão. Com as luvas também não deve dar jeito, imagino. Mais fácil é o movimento do braço, do pulso, dos lábios, quando fuma.

Observo-a atentamente. Curioso. A cabeça protegida com um gorro. Alguns cabelos claros sobre a gola grossa do casaco de peles. Longo. Preto. Totalmente fechado. Reparo nas botas pretas over-the-knee. E na atitude reprovável, de cada vez que tira a bituca da boquilha, larga-a no chão, pisa-a intencionalmente para apagar vestígios de faíscas. Fica o lixo no chão. Uma. Duas. Três. Já são quatro bitucas abandonadas. Para alguém apanhar.

Agora fala ao celular. Acabou o café, continuam os cigarros. Este está quase no fim. Ela tem o olhar longínquo, perdido no horizonte e em pensamentos que não adivinho. Não sorri. Apenas olha adiante. O que mudou, não sei. Mas ela arranca furiosamente a bituca da boquilha preta, lança-a para longe, para o lado da estrada, encosta o celular ao ouvido, fala, esboçando facialmente desagrado. Sem gorro, ela lembra-me alguém.

Recordações

Estas coisas acontecem-me. Um evento puxa o outro. Outro ainda outro. E, de repente, tenho uma imagem restaurada em mente, uma recordação apresentada com nitidez. Reconhecer a Márcia sentada ao frio com o cigarro na mão faz-me lembrar aquele dia que fomos a Coimbra, um grupo de jovens universitários, membros da Federação Nacional de Estudantes de Direito, para nos reunirmos e debatermos estratégias de atuação em prol dos estudantes das universidade públicas de Direito.

Nesse dia, o carro que nos levava para Coimbra ficou sem um pneu a meio do caminho, na autoestrada. Um furo. Nada que nos preocupasse por demais, além do atraso causado pelo tempo da troca. Eu estava nesse carro. Lembro-me bem como me limitei a observar o processo, um pouco mais tenso do que os demais, pois seria a minha estreia na federação. Ademais, seria a primeira vez que um aluno de primeiro ano assumia naquela associação um cargo. Sentia pressão sobre mim. Algo que se dissipou rapidamente depois de assinar a folha de papel, no lugar onde se lia, entre outras coisas, Secretário do Conselho Fiscal.

Experiências

Seguiram-se algumas reuniões. Depois, o jantar e um périplo pelos bares do campus universitário e arredores. O tempo passou num instante. A noite instalou-se. Chegou a hora de retornarmos a Lisboa. Metemo-nos no carro e, percorridos apenas alguns quilómetros dentro da cidade, outro pneu furou. Não havia mais suplente. Nem outra solução para além do reboque e uma ida à oficina no dia seguinte. Por sorte, um grupo de estudantes da outra faculdade de Lisboa apanhou-nos a caminho.

Como só tinham lugar para mais um, decidiu-se que seria para mim, o mais novo. As duas pessoas sentadas atrás apertaram-se. Cederam-me o lugar por atrás da condutora. Aceitei-o de bom grado, contente por não viajar desconfortável no meio. Entrei. Sentei-me. Partimos. No lugar do passageiro ia a jovem com quem eu trocara olhares na tomada de posse e na longa reunião que lhe seguiu. A mesma moça que eu beijei no último bar. A Márcia. Sorria-me, discretamente, de contente. Senti-me com sorte, uma vez mais.

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De regresso a casa

Estávamos no inverno. O carro deslizava no asfalto com facilidade. A condutora, cujo nome já não recordo, acelerava. No interior, conversava-se alegremente. Soltavam-se gargalhadas. Contavam-se histórias e piadas. A Márcia voltava-se para trás sempre que podia. Procurava-me os olhos, sorrindo com ternura. E eu fingia não o perceber ou então sorria com secura, desinteressado. Aliás, fi-lo com ela e com todos os outros. Porque, calado, só me apetecia dizer à condutora

— fecha a janela, por favor.

Eu estava cheio de frio. O ar condicionado era ineficaz contra o vento batendo-me na cara, o ar cortante e frio enrugando-me a pele, a temperatura do meu corpo baixando dramaticamente. Irritava-me não poder dizer

— podes fechar a janela, por favor?,

porque era o carro dela e eu seguia viagem de carona, de favor. Quanta ingratidão eu mostraria, ainda que falasse com brandura,

— desculpa, importas-te de fechar a janela, por favor?,

como o empregado que busca, receoso, chamar a atenção do patrão, e nisso pesa as palavras, pesa o ordenado também, desiste. Assim fiz a viagem em silêncio, tremendo

— deixa-me fumar,

durante quase duzentos quilómetros que nunca mais acabavam. E esse pedido da Márcia agravou ainda mais a minha irritação,

— deixa-me fumar,

porque representava ali mesmo, naquele instante, uma impossibilidade de nos continuarmos a beijar. Apesar do amor à primeira vista.

Conclusão

Passaram-se catorze anos. Reconheço-a agora ao balcão, aguardando a sua vez para pagar. Márcia. Ouço-a com atenção. Sigo-a com o olhar. Penso chamá-la, perguntar que o que fazia ali fora ao frio, ou, para disfarçar, o que tem feito (para além de estar ali fora ao frio). Percebo que não temos nada para dizer um ao outro. E que, se já na altura, quando passamos a noite juntos no apartamento que ela partilhava com a dona do carro e mais outra amiga, me respondeu “só fumo de vez em quando”, hoje sei no que deu.

Ela caminha na direção da porta. Um pé ante o outro. Com elegância. Enquanto pondero como teria sido se tivéssemos continuado. Se hoje estaríamos os dois ali sentados ao frio, fumando e rindo. Ou se ela manter-se-ia aqui dentro, comigo, os dois bem aquecidos. A Márcia continua uma mulher linda. Mas já não a posso admirar.

Leia todos os textos da coluna de Didier Ferreira em Vida Simples


DIDIER FERREIRA é escritor, professor de Língua e Literatura Portuguesa, doutorando em Estudos de Literatura na Universidade Nova de Lisboa (Portugal), fundador do movimento Jovens Poetas Vadios e autor de Nada Faz Sentido (Associação Poetas Almadenses) e O Diário Poético de um Empregado de Balcão (Esfera do Caos). Neste texto, o autor critica quem fuma; não porque fuma; mas porque, fumando,  prejudica tantos outros, involuntariamente.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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