Saudade não precisa doer
A saudade pode nos acompanhar sem, necessariamente, vir com a nostalgia de quem queria voltar ao passado. Por Eugenio Mussak
Esse sentimento pode nos acompanhar sem, necessariamente, vir com a nostalgia de quem queria voltar ao passado.
No poema A um Ausente, Carlos Drummond de Andrade começa dizendo: “Tenho razão de sentir saudade”. Me identifiquei com essa frase. Eu também acho que tenho razão e motivos para sentir saudades, e isso é um privilégio. Assim como Drummond, que aparentemente se refere a um amigo que partiu cedo, e que deixou boas lembranças, eu posso dizer que coleciono pessoas, lugares e situações que também deixaram em mim boas lembranças. Essa é a essência da saudade, e só quem viveu sabe.
Saudade é um substantivo abstrato, por isso pode ser usado no singular ou no plural com o mesmo sentido. E é um sentimento composto, porque junta uma alegria e uma tristeza; sem um dos dois, saudade não existiria. Há quem relacione saudade com tristeza, e se sinta como a personagem solitária do quadro do Almeida Júnior exposto na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em que uma mulher, recostada a uma janela, cobre o rosto com um cachecol e derrama lágrimas olhando para algo, que pode ser uma carta ou uma foto. Não por acaso, tal obra se chama, exatamente, Saudade.
Saudade x nostalgia
Mas é possível ter uma visão diferente da do pintor paulista e colocar a saudade no grupo dos sentimentos alegres, pois estamos, naquele momento, nos lembrando de algo que nos fez felizes. E podemos pensar como a chilena Violeta Parra, que escreveu “Gracias a la vida, que me ha dado tanto”.
Sentir saudade é bom, ter nostalgia, não, me disse meu amigo Mário Sérgio, com a razão profunda do filósofo que ele é. Como também adora etimologia, me explicou que nostalgia vem do grego nostós, que tem o significado de volta para casa, e álgos, que significa dor. Nostalgia seria a dor que sentimos por não poder voltar para casa.
Entender essa diferença pode nos libertar da dor de sentir falta de algo. É perfeitamente possível olhar para o passado com saudade sem abrir espaço para a nostalgia. Alegrar-se por ter vivido e assegurar-se de continuar vivendo. Para isso, é importante fechar os ciclos. Eu sinto saudades do tempo de estudante, mas aquele ciclo se fechou e um novo se abriu.
Viajar no tempo
Fechar um ciclo não significa esquecer. Tem mais o sentido de colocar as lembranças no devido lugar e visitá-las ocasionalmente, como um gesto de prazer. Assim como quando vemos fotos antigas e dizemos “como éramos felizes e ridículos”. Sempre que estamos passando por um momento difícil, ligamos a maquininha do tempo que faz parte de nosso cérebro e tratamos de viajar para tempos melhores.
Pode ser que você também tenha recebido pelo WhatsApp um vídeo com cenas do passado, como meninos jogando bolinhas de gude, crianças correndo por uma rua de terra, alguém recebendo uma carta pelo correio. E, ao final, a mensagem: “éramos felizes e não sabíamos”.
Sinceramente, eu não tenho saudades dessas coisas. Aliás, não sinto saudades de coisas. Meu primeiro carro, um Corcel 1970, pago em 36 prestações, me deu muita alegria, mas não gostaria de tê-lo de volta.
Idealização do passado
Não tenho saudades dele. Mas tenho ótimas lembranças dos passeios que fiz com ele. No filme Meia-Noite em Paris, Gil, um roteirista de Hollywood, idolatra os escritores que viveram em Paris nos anos 1920 – Hemingway, Zelda e Scott Fitzgerald, T.S. Eliot –, que costumavam se reunir na casa de Gertrude Stein para falar de literatura e curtir os “loucos anos 20”. Em uma noite, encontra um “carro do tempo”, e acaba por ser transportado para aquela época, em que ele não viveu, mas de que tinha saudades.
O filme é de Woody Allen, o que garante uma diversão inteligente. E é claro que Gil conhece Adriana, ex de Picasso, com quem tem um namorico. Ele se sente no paraíso ouvindo Cole Porter, discutindo arte com Salvador Dalí… Mas Adriana alega que o melhor tempo da cidade foi a Belle Époque, no final do século 19, quando ali viveram os grandes pintores, o Moulin Rouge estava em seu auge e a Torre Eiffel foi construída.
Dando um desconto para o exagero woodyalleano, confesso que ando com saudades de algumas coisas de tempos melhores.
Saudade da liberdade
Saudades de ser livre, de não ter medo, de conviver com os amigos, de sentir os abraços, de dar aulas e palestras presenciais. Sinto falta do movimento, das viagens, dos encontros, dos cafés. Tenho saudades até de coisas que me incomodavam, como turbulência de avião. Veja a que ponto chegamos…
Estamos vivendo um tempo difícil e desconfortável, o que nos faz desejar essas coisas normais de volta. E as teremos. Mas não seremos iguais. Não seremos simplesmente livres, como sempre fomos. Seremos livres novamente – o que terá um sabor especial, ainda mais doce, talvez.
A visão psicanalítica de Allen é um alerta para os perigos do saudosismo ou a idealização de que tempos passados foram melhores. Essa não é a essência da saudade que é boa de ser sentida. Ao “éramos felizes e não sabíamos”, prefiro o “sou feliz agora e sei”. Assim, sentir saudades passa a ser um privilégio, e não um fardo.
EUGENIO MUSSAK sente saudades da redação da Vida Simples, que ele frequentava só pelo prazer de lá estar.
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