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Rituais
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Repetidos, em torno da mesa, eles são marcadores no nosso tempo

Todos os dias, ao acordar, preparo meu café da manhã da mesma forma: uma fatia de pão de fermentação natural, uma fatia generosa de queijo e uma xícara de café com leite. Às vezes, modifico o acompanhamento. Pode ser também uma geleia, uma manteiga ou ambos. Todas as manhãs, desse mesmo jeito. Já inclui o ovo: mexido, frito, com gema mole ou dura. Mas sempre chega o momento em que ovo perde o espaço de protagonista. E volto para a minha zona de conforto, o queijo.

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Além da comida, existe uma série de movimentos que caminham juntos, uma sequência cadenciada, que parece aleatória, mas que de aleatória não tem nada. Primeiro, preparo o pão, que gosto levemente quente, e por isso coloco em um grill ou torradeira elétrica. Não para tostar, apenas esquentar. Depois o leite, que esquento, mas sem exageros para não queimar a língua. O lugar onde sento a mesa também é o mesmo. Um ritual que, para quem olha de fora, pode parecer aborrecido e rotineiro, mas que para mim é chão. O terreno que eu piso todos os dias para tecer meu momento, cheio de presença.

Meus próprios rituais

Acho que aprendi a ser assim, ritualística, com meu pai. Lembro de ser acordada, ao longo da minha infância, com o barulho arrastado de seus chinelos pela casa, seguido pelos ruídos suaves vindos da cozinha. A água que escorria pela caneca para se transformar em café. O espremedor de frutas que transformava a laranja em suco. O aroma – do café e da laranja  – que invadia o corredor. Na minha casa da infância, os sabores do café da manhã não eram muito variados, mas tivemos nossas fases. Teve o tempo da banana amassada com mel e aveia; o do suco de laranja com mamão; a coalhada caseira, feita pela minha mãe com o leite que ela trazia do sítio e que deixava fermentar na escuridão e no calor do armário de portas de fórmica verde da nossa cozinha.

Quando deixei a casa dos meus pais, aprendi a cultivar meus próprios rituais. Durante anos, me habituei, por exemplo, a ler o jornal (aquele de papel lembra?) enquanto tomava meu café da manhã. Mas antes de folheá-lo era preciso comer o pão, já que os dedos comumente ficavam manchados de preto, por conta da tinta do papel. A maneira como dobrava as páginas, os cadernos que elegia para ler primeiro. Tudo do mesmo jeito, todos os dias, por anos. Mas, com o passar do tempo, o calhamaço de jornal deixou de ser presença. O pão de forma deu lugar para o francês, fresquinho e comprado de manhã cedinho. E, mais recentemente, foi substituído pelo de fermentação natural.

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Comida presente

Em comum, todos esses momentos que envolvem a comida, o despertar, são cercados por rituais, alimentados numa tentativa ilusória de ter algum tipo de controle em relação ao que está por vir. Uma maneira de me apropriar do meu espaço e de mim mesma todos os dias. Apego, que seja. Ou um exercício, que se repete em ciclos que nunca se findam, uma forma de me lembrar aquilo que eu jamais deveria ousar esquecer: eu mesma. Desde que não falte o café quentinho, está tudo certo, sempre.



Ana Holanda é diretora de conteúdo da Vida Simples, autora dos livros Minha Mãe Fazia e Como se Encontrar na Escrita, ambos da Rocco. Gosta de cozinhar e de escrever, sua maneira de estar no mundo e de lidar com seus sentimentos mais profundos. Escreve mensalmente nesta coluna.

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