Renda-se ao viver

A água do chuveiro caía nas minhas costas e aliviava um pouco da dor enquanto a madrugada ainda cedia espaço aos primeiros raios de sol.

Era uma segunda­-feira de inverno, e há 40 semanas e quatro dias uma vida havia tomado forma dentro da minha barriga. Agora, estava prestes a nascer.

Tudo havia sido cuida­dosamente planejado naqueles meses para receber o bebê. Um pré-natal seguido à risca, uma equipe de par­to escolhida com critério, um enxoval montado, curso de amamentação e de cuidados com o bebê feito e mais não sei quantos livros lidos que foram, ao longo daquele tempo, apaziguando a minha necessidade de controle até ali.

Quando as contrações se intensifica­ram, custei a entender que, enfim, a vida é algo que nos atravessa. De alguma forma, eu enrijecia meu corpo para sentir menos, mas assim o trabalho de parto não evoluía.

Eu precisava deixar o medo ir, mas como era difícil me abrir à dor. Pedia para a minha avó, de onde quer que ela estivesse, que me ajudasse. Tentava me conectar com a força daquela mulher que colocou nove filhos no mundo por via natural.

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Entrega e confia

E foi depois de tanto querer controlar que eu finalmente me entreguei ao mistério. As contrações ritmaram e vieram com ainda mais intensidade. A dor nos leva para um lugar desco­nhecido, do qual a gente nunca volta igual.

Achamos que dor é sofrimento, mas naquele dia eu entendi que isso não é uma verdade. Da confiança em algo maior, muita coisa nasce, como nasceu naquele fim de tarde um menininho bem cabeludo, graças ao suporte daque­les que estavam comigo, aqui e lá em cima.

Neste mês, o nosso convite é que você confie. Que faça sua parte e que se dedique, mas que sobretudo coopere com o invisível, com a teia de recursos que sustenta a vida.

É assim que o que é nosso realmente pode vir ao mundo.

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Conteúdo publicado originalmente na edição 272 da Vida Simples