Quem são os homens-Belchior
Belchior deixou um legado que podemos enxergar em muitos brasileiros latino-americanos sem dinheiro no banco e sem parentes importantes.
Belchior deixou um legado que podemos enxergar em muitos brasileiros latino-americanos sem dinheiro no banco e sem parentes importantes, mas que trazem de cabeça uma canção do rádio em que um antigo compositor baiano lhes dizia que tudo é divino, tudo é maravilhoso.
Em nossa sociedade, ainda encontra-se os frutos de famílias proletárias. Aqueles homens, que receberam certos ensinamentos e que os carregam sem perceber, têm uma consciência de classe que lhes proporciona altivez. Dão valor ao trabalho e importância ao cuidado dos seus. São do tipo que se preocupa em não atrasar boleto e, quando já crescidos, mantêm uma vida saudável com os pais na maturidade, trocam piadas nas redes sociais assim como trocam notícias e, vez ou outra, se sacaneiam fazendo piadas sobre times de futebol mesmo que não se importem muito.
A verdade é que todo tema que possa criar vínculo acaba tendo relevância para os homens-Belchior. Difícil mesmo, para eles, é receber a mensagem de que está perdendo um bolo quente, recém saído do forno, de cenoura com cobertura de chocolate, na casa daqueles que o querem bem.
Eles são uma gente aguerrida. Resilientes que vivem as dores e crescem por meio delas, mas mantêm uma prosa Naturalista (tal como em O Cortiço, de Aloisio Azevedo). Têm cheiro de suor, mas também da pasta de dente, do perfume, da calça de alfaiataria usada com chinelo havaianas e uma camiseta branca em gola V que brilhava no varal.
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Eles são parte de uma gente com fome de aprendizado, mas que não se abalam com o não saber ou o não conhecer porque, quando olham para trás, percebem que há muito óleo a queimar ainda.
A previsão é do amanhã, perto do agora. São as emergências que dão o toque, a música com ruído de vitrola, um rádio de pilha na estação MEC dita o horário. Em Brasília são dezenove horas. Ele acende a luz do quarto e tenta enxergar seu rosto num espelho pequeno de moldura laranja desses que são vendidos na estação de trem ou no terminal de ônibus. Dá contorno na barba e consegue usar a gilete que já está dando indícios de gastura.
São homens que amam a beleza e buscam nos detalhes do dia a dia esses pequenos momentos de alumbramento. No entanto, não se interessam por aquilo que é deflagrado. Eles gostam de camadas de sentidos e possibilidades. Quando veem, por exemplo, uma mulher pisando firme com sua saia godê, imaginam o que haveria ali por baixo – quem sabe um corpo quente?
Então, é mais sobre o que eles não veem. É sobre as possibilidades do que poderia ter sido e o que há de ser.
Não há tempo para arrependimentos. Eles entendem que as cicatrizes fazem parte e elas estão por todos os lados: na alma, no espírito e em seu corpo.
Entendem que a vida é um processo e, ao final dela, bem, todos estaremos juntos. Nus, da mesma forma como chegamos. Então, para que pensar em hierarquias e dar valor a elas?
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É sobre devanear, sentar relaxado num sofá e ler um texto rápido, e combinar com o cheiro do incenso que deixa suas cinzas no canto da sala. O cheiro, o texto, as palavras ditas e não ditas, a melodia da música que vem do vizinho de alguma forma criam uma ambiência de melancolia sem tristeza, e uma vontade enorme de terem ao lado um corpo para aquecer.
Será que essa mulher existe? Eles não sabem. Mas tentam imaginar. A maioria fica na superfície e não entende sua forma de ver o mundo. De entender o que é progresso para esse tipo de gente, toda classe social tem as suas limitações, e para as abastadas, bem, sofrem de “cegueira socioeconômica”.
O tipo homem-Belchior gosta da mansidão, prefere viver nela, mesmo que isso depois traga mais feridas. Eles, não. Eles estão habituados a lidar com elas. Por isso não têm medo de seu presença.
Acreditam que a vida acontece entre o espaço de duas dores: a dor do parto e, depois, a outra dor – a da morte. Nesse tempo entre uma e outra, buscam prazeres, gostos, conversas, risos, cores, formas, gozos.
Pesquisam aquilo a que não tiveram acesso, bebem conhecimento de quem lhe oferta e são agradecidos, pois em suas muitas vidas souberam o que é dádiva e como é difícil construir repertório morando onde viviam. Sair dessa lógica de vida é complicado porque a parametrização é algoz. Não há lugar para o nível “intermediário” em nada. Muito menos para o cidadão que é percebido como “básico”.
Homens-Belchior não aceitam uniformes, muito menos pesar. Constroem sabedoria a partir da vivência, aprendem com as mãos e sabem usá-las, aplicando força ou delicadeza quando é preciso. A alma feminina é um mistério, disso eles têm certeza. Mas compreendem que elas precisam ser ouvidas, e eles têm interesse e tempo. Quando estão disponíveis, são entregues, pacientes e seguros. Têm braços grandes, mas não tão grandes a ponto de sufocar. Assim como precisam de pouco espaço na cama, de um tamanho que sequer se sente. Grandes e delicados na mesma proporção.
Belchior deixou um legado que podemos enxergar em muitos brasileiros latino-americanos sem dinheiro no banco e sem parentes importantes, mas que trazem de cabeça uma canção do rádio em que um antigo compositor baiano lhes dizia que tudo é divino, tudo é maravilhoso.
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HILAINE YACCOUB (@hilaine) é mestre e doutora em Antropologia do Consumo. Como pesquisadora, palestrante e consultora, há 20 anos aplica a Antropologia Estratégica nas empresas traduzindo comportamentos, movimentos culturais e lógicas de consumo das pessoas para a construção de soluções, entendimentos e tomadas de decisão assertivas.
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