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Precisamos voltar a “arear as panelas”
Kampus Production
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Recentemente, estive na casa de minha tia revirando algumas caixas de papelão deixadas por minha avó na parte de cima de seu antigo guarda-roupa, no quarto em que viveu até agosto do ano passado, quando nos deixou aos 91 anos. Lá estavam documentos velhos, alguns recortes de jornais e revistas com as matérias que eu havia escrito no início de minha carreira como jornalista e também algumas fotos misturadas com forros de porta-retrato. Esparramei tudo que encontrei no chão à minha frente e ali fiquei viajando no tempo.

Chamou-me a atenção uma foto de um colorido já desbotado, mas ainda com certa nitidez, onde eu e Dona Nena estamos sentados no primeiro degrau de uma escada azulejada, tendo aos nossos pés um monte de panelas dos mais variados tipos e tamanhos. Eu, um molecote magrelo e cabeludo e minha avó, ainda com traços menos vincados, areávamos as panelas de sua cozinha

Puxei pela memória e me dei conta ser aquele um registro de alguma tarde dos anos 80, época em que zelo e capricho de uma casa também podiam ser percebidos pelo brilho das panelas. 

Passávamos a tarde toda ali, ora imprimindo um ritmo mais acelerado no friccionar da palha de aço no fundo da panela, ora um ziguezaguear mais curto com a ponta dos dedos por entre as dobras e os cabos. As panelas mais velhas, em cujo assentar no fogão se fazia diário, exigiam um cuidado maior, principalmente com as crostas acumuladas com o tempo nos pequenos amassados do alumínio. Era um trabalho de esmero feito de amor sutil muito além do tempo.

Cuidar do que não morre

Claro que eu não ficava contando os dias para chegar a tarde em que eu me sentaria naquele degrau de escada e só levantaria meu traseiro quando visse meu rosto refletido no último fundo de panela. A certeza de ganhar um bom picolé ou às vezes até um Cornetto da Kibon, quando o trabalho se estendia por conta do acréscimo de algumas pratarias para limpeza, era o que de fato me motivava em minha primeira década de vida recém completada.

Mas, havia algo de especial naquelas tardes com minha avó, algo que aquela foto do passado — agora em minhas mãos — me levava a refletir. Percebi, simbolicamente, a importância de darmos mais atenção para o que está além do que é efêmero na vida, de buscarmos valores mais duradouros e conexões mais profundas com tudo que nos cerca.

“Arear panelas” pode ser uma ótima maneira de alimentar o que nunca morre: a essência humana.

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Penso que estamos vivendo numa época em que tudo está fragmentado. Só valorizamos os acontecimentos do dia, da hora, do momento… Buscamos o que é rápido e útil e logo depois descartamos para, em seguida, buscarmos outras novidades para substituir. 

Trocamos nossas “boas panelas” — que só precisam de uma “boa areada” — por outras de fundo esmaltado e design arrojado no anúncio da semana. Esperamos que a nova nos faça ganhar tempo e tempero pra vida, mas, como dizia minha avó “guisado bom, daqueles que desfaz carranca”, só ganha consistência e sabor com horas de fogo e bom raspo de fundo de panela.  

Estamos deixando de diferenciar o que permanece com o tempo do que é pulverizado com o passar dos dias. O desejo pelas coisas eternas e pelo aprofundamento no que é essencial e permanente para o ser humano têm se perdido à medida que não lapidamos nosso brilho interno. 

Como me disse uma convidada recente do meu podcast, a nossa vida atual corre o risco de ser toda virtual e cheia de conectividade. Acompanhamos em nossas timelines o que acontece em cada parte do mundo, rolamos o dedo pela tela do celular para ver a vida dos artistas, das celebridades, dos influenciadores, mas temos dificuldade de saber o que queremos, o que sentimos, o que nos entristece e o que realmente nos alegra. 

Tem momentos que precisamos nos recolher e arear nossas panelas. É no silêncio refletido em nosso cuidado que nos encontramos. 

Arear as palavras

Na semana em que escrevo esta minha coluna em Vida Simples, ganhou destaque no noticiário, o lançamento da plataforma de inteligência artificial ChatGPT, basicamente um robô que responde a perguntas variadas e é capaz de elaborar os mais diversos textos e conversar de maneira fluida sobre muitos assuntos

Gosto de tecnologia, acho que tem nos ajudado neste caminhar evolutivo, mas, como um amante das palavras, da escrita e de uma boa conversa, fiquei pensando que uma máquina jamais conseguirá elaborar um texto que toque o coração e vá fundo na alma. 

Sim, eu sei que as ferramentas se aprimoram a cada dia, são capazes de criar conexões e sentidos de ordem que agilizam muitos processos, mas elas não sabem “arear panelas”, ou melhor, não sabem “arear palavras”. 

Uma máquina nunca pegaria uma foto como essa que menciono neste texto de forma a olhar pra ela e se emocionar, relembrar de um tempo em que só o coração sintoniza, sentir o cheiro, o sabor de uma época

Um robô jamais saberia que, naquele mesmo degrau da escada azulejada, passei outras tantas tardes com minha avó, ora recebendo seu carinho, ora sofrendo com o arrancar de alguns fios do meu cabelo para matar as lêndeas e piolhos que por vezes me visitavam na idade escolar. 

Saudades de Dona Nena, saudades dos tempos em que areávamos as panelas. Aliás, me deu vontade de tomar um Cornetto. Acho que vou lá na padaria.


*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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