Porque o cinismo adoece
O cinismo uma vez instalado, perpetua-se na sua própria circularidade: alimenta desconfianças, falsifica os afetos e inviabiliza relações
Você é daqueles que pensa que o amor é uma fantasia social que “quando é bom não dura e quando dura já não entusiasma”, que a razão do amor do seu cão é porque você o alimenta e a única explicação para uniões com diferença de idade é a conta bancária? Você acredita que a intolerância ao glúten é uma artimanha da industria alimentar para “inventar” novos produtos e aumentar o lucro? Frutas e legumes fazem bem para saúde? Nem pensar. É propaganda dos agricultores para despejar toneladas de alimentos envenenados com agrotóxicos. Já descobriram uma vacina contra o câncer, mas o poderoso lobby dos fármacos da quimioterapia impede a divulgação porque a cura não dá lucro. As terapias alternativas, como a homeopatia, são pseudociências para enganar desavisados?
Se você se identificou com algumas dessas afirmações e está satisfeito por ser uma pessoa esclarecida, que não se deixa enganar… Pode ser verdade, mas o mais provável é que você seja apenas um cínico. E não há razão para orgulho. Os adeptos das teorias da conspiração — o “tudo o que acontece tem um interesse maléfico oculto” — são evitados a todo custo. Ok. Você não se incomoda de estar à margem, está convicto de suas crenças e já não se importa que as pessoas queiram que você morra longe. “Se querem ser enganadas, o problema é delas”. E aqui chegamos ao ponto: não é um problema delas, é seu. O cinismo é um princípio destrutivo, hostil à vida. E, sabe-se agora, traz doenças.
Há anos que os estudiosos alertam para as contraindicações do cultivo de uma visão negativa da vida. Já se sabia que a prática do cinismo diminui gradativamente a auto-estima e o bem-estar psicológico. O efeito é semelhante ao da inveja: volta-se contra o seu autor. Um diagnóstico óbvio. Afinal, não há vida boa quando se acredita que as pessoas não são confiáveis e que o mundo não é um lugar seguro. Até aqui sem muita novidade. Há uma espécie de consenso de que a maneira como enxergamos o mundo tem um efeito sobre nós. Se encaramos o mundo com hostilidade, ele se volta contra nós. É o clássico nietzschiano de que se você olha para o abismo, o abismo também olha para você. Ora, o mal-estar psicológico continuado estende-se ao corpo e chegam as doenças físicas. Sabe-se que o grande perigo do estresse é que ele é a porta de entrada de inúmeras doenças, como a hipertensão, os acidentes vasculares etc.
Porém, uma investigação recente concluiu que o cinismo não está presente apenas como causador de doenças, mas também é uma consequência — e um agravante — delas. Explico melhor. Na vida não há fórmulas, pessoas de bem com a vida também adoecem. Sem saúde, perdem-se autonomia e passam a depender de outros. Sem controle sobre a vida, vem a insegurança. Nesse quadro de sofrimento, criam-se estratégias de autoproteção, como a desconfiança, a hostilidade e… o cinismo.
A doença prolongada — ou recorrente — afeta a percepção sobre a vida. Passa-se a ser menos otimista e adquire-se uma atitude de desprezo por convicções sociais, normas e valores morais. O cinismo entra aqui como um mecanismo de sobrevivência. Porém, produz um efeito contrário. Um doente cínico torna-se ainda mais doente.
Agora é preciso fazer uma distinção. Já vi grandes estrelas da filosofia colocar cinismo como sinônimo de hipocrisia. O hipócrita é um mentiroso. Mente porque aceita as convenções sociais e sabe que mente. O cínico não. Ele realmente acredita naquilo que diz. Rejeita convenções sociais e não se esconde, não se envergonha. Pelo contrário, é vaidoso. Ele é um ser superior para quem a verdade foi revelada.
A definição de cínico hoje está mais próxima do seu sentido original que data do século 4 a.C. A corrente filosófica denominada Cinismo surgiu na Grécia antiga pela voz de Antístenes, discípulo de Sócrates. Seus adeptos eram descrentes da sinceridade e da bondade humana e desprezava as convenções sociais. Na praça pública ateniense eles usavam o escárnio e a crítica para encorajar às pessoas a renunciar aos desejos e frivolidades da vida social. Proponha uma vida autêntica, próxima da natureza. E já nessa altura a denominação de “cínico” não era positiva. A palavra vem do grego “kynikos” que significa “semelhante a um cão”. A referência vinha da extrema pobreza de alguns cínicos, a ponto de viverem na rua. A piada vigente era a de que os cínicos — mordazes e destemidos na crítica social — “mordiam” como cães.
E tal como os antigos cínicos, os atuais ostentam um certo orgulho. São superiores e autossuficientes. São os donos da verdade. Sabem o que é importante e desprezam os que não foram contemplados com essa lucidez.
Conta-se que o mais famoso dos cínicos, Diógenes de Sinope, discípulo de Antístenes, perambulava pelas ruas carregando uma lamparina, a procura de um homem honesto. Famoso em todo o mundo grego, foi inquirido por Alexandre, o grande, que ao encontrá-lo perguntou o que poderia fazer por ele. Acontece que devido à posição em que se encontrava, Alexandre tapava-lhe o sol. Diógenes disse-lhe “Não tire o que você não pode dar!” (isto é: “Saia da minha frente, você está fazendo sombra “). A resposta impressionou-o muito. Quando os seus oficiais zombaram de Diógenes, o conquistador do mundo disse: “Se eu não fosse Alexandre, queria ser Diógenes.”
Aqui concordamos com Alexandre. O cinismo tem charme. Afinal, quem não sucumbiu ao encanto do Dr. House? O seu exercício exige alguma arte, uma certa agudez intelectual, habilidade com as palavras, uma ironia fina. Apesar da personagem de Hugh Laurie exibir um perfil odioso — mau humor, sarcasmo, falta de empatia com os pacientes — a ponto de evitar examiná-los — de exibir um nítido desprezo pela humanidade —“Todo mundo mente” — conquistou fãs no mundo inteiro. Tenho a ressaltar que ele é um personagem. Um médico com superpoderes, salva vidas, é um herói. Perdoamos o seu humor corrosivo e a ousadia de dizer tudo o que lhe vai na cabeça. E na nossa inclinação para consertar o mundo, a cada episódio torcemos para que ele fique mais humano, melhor.
Outro exemplo que amamos é a “mordida” cínica da genial escrita de Friedrich Nietzsche. Toda a sua obra é permeada de sarcasmo e ironia como recurso para expor as suas ideias. E era intencional. Nieztsche era um fã assumido dos seguidores de Antístenes. Tal como eles, Nietzsche também criticou a decadência do seu tempo e pregou a vida autêntica. Apesar das semelhanças, o seu sarcasmo era restrito a sua escrita. No trato social, Nietzsche era generoso e empático. Mas, tendo em mente a associação do cinismo a estados enfermos, não posso deixar de mencionar que a doença acompanhou Nietzsche praticamente durante toda a sua vida.
Doenças à parte, como surge um cínico hoje? Infelizmente não vem de uma decisão filosófica. É uma atitude aprendida com a vida. Na sua base estão a falta de confiança, insegurança e baixa autoestima. Acontecimentos — traumas, acidentes, doenças, lares desestruturados e ambientes de violência —desencadeiam pensamentos negativos sobre o futuro e desconfiança em relação aos outros.
O cinismo uma vez instalado, perpetua-se na sua própria circularidade: alimenta desconfianças, falsifica os afetos e inviabiliza relações. E isso porque — como foi verificado neste artigo —antes de dizer qualquer coisa a alguém, dizemos primeiro a nós mesmos.
No resumo geral, o cínico intoxica a si próprio. Porém, há quem diga que a vida em sociedade seria impossível sem um pouco de cinismo. É verdade. Diluído e em pequenos cálices, o cinismo pode ser uma crítica, uma válvula de escape. Afinal, nos tempos que correm não dá para ser fofo o tempo todo.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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