Paladar nas nuvens – uma jornada de sabores pela Índia
André Mafra continua sua série de textos sobre a culinária indiana. Para despertar o paladar dos leitores e, quem sabe, uma aposta mais ousada para o próximo jantar, o colunista relata sabores surpreendentes da gastronomia local.
Tenho uma paixão por culturas e tradições antigas e se você me acompanha por aqui faz um tempo, já notou a inevitável insistência que dou às culturas provenientes da China e Índia. Afinal, são duas tradições ancestrais e, em cada uma delas, pode-se gastar uma vida toda desvendando seus segredos e delícias.
Em mais uma jornada pela Terra das Especiarias, tive o prazer de me deparar com uma curiosa e satisfatória tendência, que foi a de encontrar, em vários restaurantes, muitas opções de pratos indianos, é claro, mas também da culinária chinesa – e, diga-se de passagem, bem autêntica. Ambas as cozinhas repletas de especiarias, cada uma ao seu jeito, ofertando um maravilhoso tratamento aos pratos, sempre impregnados de muitos condimentos, algo que me agrada bastante.
Começo pela curiosa e distante região de Meghalaya, no nordeste da Índia, que faz fronteira ao sul com Bangladesh, onde estive com minha parceria de estudos da cultura khasi. Trata-se de um grupo cuja tradição ainda carrega traços de culturas matriarcais, em que o papel das mulheres é crucial no funcionamento e organização da sociedade.
Longe dos “spots” turísticos, Meghalaya é um estado relativamente pequeno e com uma densidade populacional baixa, em comparação ao resto da Índia. Os setes estados irmãos (seven sister states: Arunachal Pradesh, Assam, Manipur, Meghalaya, Mizoram, Nagaland e Tripura), formam um bloco juntamente com Sikki, que representa o pedaço mais a nordeste do país, ligado ao restante do subcontinente por um estreito corredor de apenas 22 km, apelidado de “pescoço de frango” (chicken’s neck).
Tradições chinesas e indianas
Foi na capital Shillong que desfrutei de cardápios fartos de opções das cozinhas indiana e chinesa. Um dos lugares que me surpreenderam foi o City Hut Family Dhaba, um grande complexo cujo restaurante está sempre cheio e contou com nossa presença por mais de uma vez, enquanto estávamos hospedados na cidade. Destaque para a sopa com limão e coentros, formando um suave caldo temperado com especiarias que traziam frescor e leveza, preparando bem estômago para o suculento panner tikka (panner é um tipo de queijo bem leve, marinado em especiarias e assado em espeto no forno tandoor, típico do norte da Índia).
Dentre os destaques da culinária asiática, fomos de dumplings, um tipo de bolinho de vegetais ao molho manchu (vegetable dumpling manchurian sauce) e as muitas versões de noodles. De sobremesa, escolhemos a mais popular entre os turistas na Índia: o gulab jamon, que são bolinhas feitas de leite, servidas quentes em uma calda de açúcar e água de rosas, mais sorvete de creme. Imperdível.
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Comidas típicas
Nas ruas do centro de Shillong, passeando entre as barracas das mulheres khasis, eu me aventurei em provar o paní púrí, gol gappa ou phuska – uma bolinha de massa frita bem crocante, cuja casca é quebrada com delicadeza para ser preenchida parcialmente com uma mistura de batata e especiarias. Depois, esse pequeno “recipiente” é usado para pegar um caldo feito à base de limão, gengibre, hortelã, coentro e muitos outros temperos, e tudo isso deve ser comido de uma só vez, numa explosão de crocância e sabores que vão do leve toque azedinho do limão ao apimentado.
Já na capital indiana, conheci o descolado Wok in the clouds, localizado no badalado khan market, uma região cheia de bons restaurantes, sebos bagunçados, lojas de roupas, cafés, lojas de doces e quase todos com uma interessante característica: os estabelecimentos possuem duas portas de entrada, dando comunicação a duas ruas. No cardápio do restaurante das nuvens, encontrei o conceito de fusão de comidas asiáticas, que já me surpreendeu. Destaque para os vegetais preparados com a estrela da culinária chinesa, a pimenta sichuan, acrescidos de um molho temperado com pimenta preta (vegetarian schezwan treasure), aquela que no Brasil se chama pimenta do reino, herança colonial portuguesa.
Outro espetáculo que pude saborear foi, mais uma vez, o panner envolto em um molho agridoce suave (honey chili panner) que atenuava os chilis, ainda acrescido de pimentões verdes e cebola. Sim, era bem apimentado! Tudo muito bem apresentado, em um ambiente agradável permeado pela juventude da emergente classe média alta da cidade.
Superstições
Falando em pimentas, encerro a descrição deste artigo citando a curiosa superstição que conheci em Mumbai, na qual sete chilis verdes e um limão são atados por um fio e colocados nas portas ou mesmo nas placas dos carros. Neste último caso, talvez gerasse uma multa aos condutores paulistanos, devido ao olhar sempre atento dos profissionais do tráfego, afinal, o “kit mau-olhado” tapa parte da placa.
Segundo a lenda que pude averiguar, as pimentas e o limão eram amarrados junto aos carros de bois no passado. Em caso de uma picada de serpente, o limão e a pimenta eram usados para saber se a mordida da transeunte rastejante era venenosa ou não, porque, em contato com a boca, o veneno amortece a percepção das papilas e o investigador não sentiria nem o azedo do limão nem o ardor da pimenta. Logo, a picada seria de serpente venenosa!
Espero ter despertado as suas papilas gustativas e, quem sabe, até inspirado você a buscar uma comidinha mais exótica para o próximo jantar, com sabores surpreendentes. Será que consegui?
*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.
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