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“Pai e mãe são sagrados”: conheça o perigo por trás das crenças familiares
Jessica Rockowitz
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Não podemos negar que o Brasil é bastante conservador no quesito família. Ultimamente, muito vem se falando da questão dos pais imaturos ou deliberadamente abusivos. Há de se convir que, na prática, o discurso da massa ainda é de proteção aos pais, não importa o que aconteça e nem o impacto de suas ações nos filhos. A seguir, vamos abordar como as crenças familiares enraizadas na sociedade perpetuam a romantização da família e acabam encobrindo problemas, que muitas vezes geram a culpabilização dos filhos.

Crenças familiares muitas vezes encobrem sérios problemas

Crenças sobre os pais são repassadas ainda de geração a geração e usadas não só para justificar problemas sérios, mas também para o estabelecimento de uma dívida destes filhos perante os pais. Quem nunca ouviu “como os pais sempre fazem tudo pensando no bem dos filhos”, “como são sagrados”, “como se doaram incondicionalmente” e, especialmente, o quanto “os filhos os devem”?

A verdade é que a dádiva da vida é uma dívida que ninguém pode pagar, já que é, por definição, infinita, do tamanho da própria vida, portanto insanável.

Assim como os cuidados iniciais que recebemos: como retribuir algo que é tão inevitavelmente necessário para que fiquemos vivos? Será que essa é uma dívida que temos que pagar? Qual o custo deste pagamento? Será mesmo que todos os pais e cuidadores iniciais têm sempre o melhor para os filhos em vista?

O custo do amor familiar e o peso da culpa

Tenho contato com centenas de histórias familiares por dia, por conta da minha atuação nas redes sociais. Faço questão de ampliar o debate sobre a romantização da instituição família, trazendo relatos inclusive bastante desconfortáveis, mas que percebo que são extremamente comuns. Em todos os casos, as pessoas se sentiam sozinhas e culpadas por pensar que só acontecia com elas e que a culpa dos desencontros da relação era sua.

Os relatos contêm violências de todo tipo, que hoje são tipificadas na lei Maria da Penha, mas que são vistas apenas como deslizes ou comportamentos inadequados, cheios de boas intenções. Nem sempre é o caso.

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É hora de rever as crenças familiares: pai e mãe também são humanos

Pais e mães (e quaisquer cuidadores que tenham estado conosco no início) são humanos, e como humanos, não só falhos por definição, mas também sujeitos ao repasse de adoecimento cultural e familiar.

Costumo dizer que famílias são grandes funis, que podem repassar o que viveram e presenciaram sem nenhum filtro, mas que também podem escolher filtrar e fazer deste grupo algo muito autoral e mais saudável, o que nem sempre conseguem ou desejam.

A grande questão é que não se consegue lidar com o que não se consegue nomear, e para a psicanálise, corremos o risco de repassar e repetir nas nossas relações atuais tudo que fica na seara do não-dito. Mesmo o que já nomeamos e elaboramos pode correr o risco de ser repetido na nossa história com nossos próprios filhos e pessoas que amamos, imaginem o que não foi ainda sequer elaborado pelo psiquismo.

É sempre o caso de humanizar os pais, mas, que essa humanização não sirva para esconder de nós mesmos a possibilidade de reconhecer, nomear e lidar com as questões problemáticas e danosas que vivemos.

Se nem sempre a ação correspondeu à uma boa intenção, é importante que nós tenhamos a oportunidade de integrar tudo isso sem florear e nem negar.

Responsabilidade e reparação nas relações familiares

Se ainda há amor na relação dos filhos adultos e dos cuidadores, e se eles tiverem força de ego suficiente, pode haver remorso e reparação da parte dos pais e, por vezes, aceitação e entendimento da parte dos filhos.

Nosso compromisso maior não é de manter intacta as imagens de nossos pais, mas sim de sermos bons ancestrais para as gerações vindouras.

Mas, que tenhamos em mente que “tudo compreender não é tudo perdoar”, como disse Freud. Nosso compromisso precisa ser com a verdade e com a saúde do nosso psiquismo.

Muitas vezes, o perdão não será possível, outras vezes só será possível junto com uma relação permeada por limites saudáveis.

Lidar com o passado para construir relações mais saudáveis

De todo jeito, cada pessoa vai lidar como é possível com o que lhe aconteceu, mas é importante que a gente possa lidar, se responsabilizar.

Afinal, adultos que somos, podemos dar um outro rumo, talvez mais adequado ao que desejamos, à nossa vida e construir relações mais inteiras e seguras.

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