Os sons e os cheiros acompanham a nossa vida
Os sons e os cheiros caminham conosco, fazem parte da nossa memória afetiva e nos fazem reviver os bons e maus períodos da nossa existência.
Os sons e os cheiros caminham conosco, compõem a nossa memória afetiva e nos fazem reviver os bons e maus períodos da nossa existência.
Você conhece Araraquara? Está localizada no interior do Estado de São Paulo, há exatos 274 quilômetros da Capital. É ali que fica a Cutrale, a segunda maior produtora de sucos de laranja do mundo, possuindo 25% desse mercado. Por isso, ao chegar na cidade, você se surpreenderá, pois irá sentir um cheiro de laranja que envolve boa parte da região. Se estiver vivendo bons momentos em sua vida, o aroma de laranja será uma recordação agradável. Se, por outro lado, estiver passando por momentos difíceis, talvez não tenha lembranças muito positivas.
Segundo o pensador Mikhail Bakhtin, um dos mais destacados pesquisadores da linguagem, temos “vozes” que nos acompanham por toda a vida. Essas “vozes” são formadas pelas características das pessoas com as quais convivemos, pelas músicas que ouvimos, pelas imagens que observamos e, evidentemente, pelos cheiros e sons que nos acompanham. Tudo será impulsionado, constituído e especificado por alguma emoção ou estado de espírito no curso de nossas ações e interações. Assim é a nossa vida. Os sons e os cheiros caminham conosco e nos fazem reviver os bons e maus períodos da nossa existência. Nesta época de pandemia, como antídoto, vou falar só de boas reminiscências. Por exemplo, quando ouço um apito de trem, sinto forte emoção, já que esse som me remete a uma época feliz que vivi na infância.
Essa mesma cidade de Araraquara, onde nasci e fui criado, era muito bem servida pelo transporte ferroviário. Tanto que a oficina da estrada de ferro estava instalada lá. Boa parte da população trabalhava nessa oficina. E está presente na minha memória uma imagem curiosa. Logo depois das cinco da tarde, os funcionários saíam do local de trabalho e desciam com suas bicicletas. Parecia um enxame sem fim. Tomavam toda a extensão da Avenida Bento de Abreu, que é bastante longa, desde o início até o final, como se formassem um único bloco.
O trem apitava e o relógio batia
Exatamente às dez horas da noite, era possível acertar o relógio pelo apito do trem. Esse era o horário em que a locomotiva se aproximava da curva e apitava para avisar que estava passando. Assim que o trem apitava, o relógio carrilhão, que ficava na sala, também tocava. Era o sinal de que eu já deveria estar na cama. Eu me cobria com o lençol, acertava o travesseiro e dormia pensando nas brincadeiras que teria pela frente no dia seguinte. Não poderia haver momentos de maior prazer que aqueles para uma criança. Por esse motivo esse som me é tão agradável e me traz lembranças tão felizes.
Poucos anos depois, mais jovenzinho, entre quatro e cinco horas da manhã, eu acordava com a partida de um caminhão que ficava estacionado perto da minha casa. Nesse horário, o motorista ligava o veículo e deixava o motor funcionando por um tempo antes de pegar a estrada. Essa também foi uma época muito boa. Nenhum problema para resolver. Com tempo para estudar, ouvir música, ir ao cinema, dançar e conviver com bons amigos. Pode parecer estranho, mas o ronco do motor de um caminhão mexe com as minhas boas lembranças.
Tempo de descanso
Na época das férias havia pelo menos duas possibilidades de passeio, ir para São Paulo — e ficar uns dias na casa dos meus avós — ou ir para Bueno de Andrada, a onze quilômetros de distância, na casa dos meus primos. A ida para São Paulo era cercada de grande expectativa, pois de vez em quando alguém da família resolvia descer para o litoral. A viagem ainda era feita pela estrada velha de Santos, que valia tanto quanto chegar às praias. Assim que nos aproximávamos da cidade, aquele cheiro característico da água do mar era inconfundível. Nunca mais me esqueci. Toda vez que vou para a praia e sinto o cheiro da água salgada eu me lembro da felicidade que experimentava naquelas rápidas viagens para a baixada santista.
A ida para Bueno de Andrada não era diferente. Como eu gostava de brincar com os meus primos Renato, Carlos, Jacob e Eli! E aquele lugarejo era um verdadeiro paraíso. Tudo o que uma criança pudesse sonhar para passar o tempo brincando iria encontrar ali. No caminho, tanto viajando de trem como de jardineira, ao me aproximar da cidadezinha, sentia aquele perfume forte do eucaliptal. Quando o dia estava meio chuvoso, o perfume era ainda mais intenso. Hoje, quando passo perto dos pés de eucaliptos, abro o vidro do carro na esperança de sentir aquela mesma fragrância. São lembranças muito agradáveis que jamais me abandonaram.
Dormia com o som do trem
E mais: o meu tio era ferroviário e sua casa ficava pertinho da linha de trem. Mais uma vez o trem em minha vida. Eu já estava na cama quando ouvia a composição distante que se aproximava. O som era tão agradável que da passagem da locomotiva até o ultimo vagão eu já havia adormecido. Para matar um pouco a saudade, de vez em quando ponho no celular um dos inúmeros barulhos de trem disponíveis. É um sonífero aconchegante.
De vez em quando eu mudava o destino das férias e ia para Santo André, na casa dos meus tios Elmer e Nair. Como ele era funcionário da Rhodia/Valisere, eu podia passar o dia no clube da Rhodia. Geralmente esse período de férias era no mês de julho e os dias eram frios e sempre com uma leve garoa. Jogar futebol com esse tempo proporcionava-me uma alegria especial. Hoje, quando a temperatura está mais fria, com céu nublado e um leve chuvisqueiro, parece que estou lá me divertindo.
Às vezes passamos por essas experiências e não nos damos conta. São momentos especiais vividos na infância, na juventude, ou mesmo na vida adulta. Se puxarmos pela cabeça, podemos nos lembrar de algum som, de algum cheiro, de algum detalhe, até quase despercebido que nos tenha marcado, e que pode nos trazer lembranças muito agradáveis.
E você? Quais são os sons e aromas que mexem com as suas recordações? Quais são os mais agradáveis? E aqueles que lembram de momentos que precisaram ser superados? Reflita a respeito dessa questão e tente buscar na memória o que pode ter significado de boas recordações.
Reinaldo Polito é mestre em Ciências da Comunicação, palestrante, professor nos cursos de pós-graduação em Marketing Político e Gestão Corporativa na ECA-USP e autor de 34 livros que já venderam 1,5 milhão de exemplares em 39 países. Sua obra mais recente é“Os Segredos da Boa Comunicação no Mundo Corporativo”. @polito
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