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Os Mosuos e seu matriarcado: conheça um olhar alternativo para o amor
(ANDRÉ MAFRA/ARQUIVO PESSOAL)
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Neste artigo:

A escritora e psicanalista Regina Navarro Lins, em seu O Livro do Amor, pontua que “a área dos afetos é a mais difícil de viver”, e confesso que concordo bastante com ela. Ao longo da minha jornada profissional, travei contato com muita gente e muitas equipes, e não há dúvida de que se as coisas do coração não andam bem, parece que o resto fica difícil, não é mesmo? Não foram poucas as carreiras que vi naufragarem por desconfortos emocionais, levando a conflitos que escalaram sem necessidade. E, fazendo uma investigação, dá para perceber que se tratam de questões afetivas e de relacionamentos. O coração não vai bem.

Não tenho todas as respostas. Na verdade, nem tenho a pretensão de tê-las, mas sinto que posso ajudar no arejar de novas ideias, por meio do conhecimento de outros modelos sociais, com outros paradigmas e novas construções, inspirados numa raiz advinda do berço de sociedades matriarcais. Que tal abrir o coração e pensar no que você pode levar, desses curiosos modelos sociais, para sua área dos afetos e relacionamentos?

Casamento com liberdade de escolha

Dê aquela leitura rápida nos textos que fiz sobre os mosuos, o Reino das Mulheres e as características de uma sociedade matriarcal, nos quais descrevo as características básicas daquela interessante cultura, cujos valores matriarcais ainda persistem atualmente. Os mosuos são uma minoria étnica de pouco mais de 40 mil habitantes nos arredores do Lago Lugu, entre as províncias de Yunnan e Sichuan, no sudoeste da China.

Dos aspectos citados no segundo texto, vamos nos deter no conceito do “Casamento Andante”. Trata-se de um arranjo que compõe uma tradição única, em que os casais vivem separadamente e os filhos são criados dentro do clã materno, sendo a responsabilidade sobre eles compartilhada entre todos e com os tios maternos desempenhando um papel mais significativo do que o próprio pai biológico.

Na descrição dos mosuos feita pela cultura e povo Han (汉人), grupo étnico da China que representa mais de 80% da população do país, o casamento andante é “rénlèi zìyóu hūnyīn de wángguó”(人类自由婚姻王国), que em uma tradução e interpretação livre que meu chinês de nível básico permite, é: “Território onde a humanidade desfruta do casamento com liberdade de escolha”. Bacana, mas como será que isso funciona?

O casamento andante fascina estudiosos, turistas, viajantes e curiosos por todo o mundo há séculos. Marco Polo, no final do século XIII, em seu famoso relato de viagens As Maravilhas, conta suas peripécias e seus espantos sobre povos que conheceu em sua extensa jornada pela Ásia, e é bem provável que tenha travado contato com o povo mosuo. O fato é que o modelo popularizado e amplamente aceito e assimilado por boa parte da humanidade não significa que seja o melhor, nem que seja a única forma de se relacionar. O mesmo vale para a criação dos filhos, a gestão dos bens e da herança e tudo o mais.

Como se organizam os clãs mosuos

Casa mosuos. (ANDRÉ MAFRA/ARQUIVO PESSOAL)

Casa mosuos. (ANDRÉ MAFRA/ARQUIVO PESSOAL)

Entre os mosuos, vive-se no clã materno, ou seja, debaixo do mesmo teto da mãe, irmãos e irmãs, sobrinhos e sobrinhas. Todos que respeitam e seguem a matrilinearidade descendem do sangue da matriarca. Parente é aquele que tem vínculo consanguíneo. Por isso, um clã formado pela linhagem de uma matriarca é extenso, uma grande família que vive junta e cujos membros nunca saem para constituir novos clãs, a não ser em acordos excepcionais feitos em consenso entre todos os integrantes.

Um relacionamento afetivo surge sempre de dois clãs distintos. Os dois indivíduos que se apaixonam vivem o relacionamento com cada um mantendo seu vínculo com o clã da mãe, ou seja, não saem para se casar, não mudam de casa, não constroem uma nova família. Em uma das entrevistas (Episódio Amor e Liberdade), que está na série Reino das Mulheres sobre os mosuos, ouvimos que o parceiro é algo que acontece e pode ser sério, mas um dia pode deixar de ser. Mas família não; ela está sempre presente, nunca abandona nenhum dos seus membros.

Em um relacionamento como o dos mosuos, em algum momento haverá uma gravidez e esta nova criança pertencerá apenas a um dos clãs que, obviamente, é o da mãe. Cabe a ela ofertar, juntamente com os muitos outros membros daquele arranjo familiar matrilinear, uma educação cheia de amor e muito carinho, algo típico de sociedades matriarcais.

Mas, e o homem, e o pai?

Faz muito anos que organizo rodas de conversas, palestras e cursos nos quais apresento, com minha parceira Mara Carneiro, os modelos de algumas sociedades matriarcais e sempre, em “200%” das vezes, aparece a dúvida sobre o pai ou sobre o papel da figura masculina. Curiosamente, essa questão vem de mulheres. Entendo, afinal, nascemos com o conceito do pai como pilastra fundamental e estruturante da família.

Mais do que uma figura masculina importante, o homem forja seu lugar social como responsável pelo ato biológico de deixar sua linhagem garantida no ventre da mulher, que, por obra dele, se torna mãe. Até poucos séculos atrás, acreditava-se que o homem carregava em seu espermatozoide, um homúnculo, que iria se desenvolver no ventre da mulher, e esta teria, assim, um papel secundário na magia da criação da vida. Crescemos com histórias violentas de homens lutando pela continuação da sua linhagem, a saga por um filho varão que será o detentor das posses, o seguidor da tradição, o herdeiro, o novo rei e assim por diante. Afinal, em uma estrutura patriarcal, o Divino é masculino, é o Pai, é o Criador.

Mulheres e redes de apoio

Entre os mosuos, via de regra nas sociedades matriarcais, não temos a mulher como elemento dominador submetendo os homens que, calados, suportam. Não se trata do patriarcalismo ao contrário. Entre os mosuos, cabe aos irmãos da mãe a função do que consideramos ser o pai biológico, no caso deles, empreendida por mais de um homem.

Em outra conversa, perguntamos a uma matriarca mosuo: “Você já tem dois filhos… pretende ter mais?” Ela respondeu: “Não, minha irmã já tem 3.” Ou seja, os filhos que a irmã tem são de responsabilidade também dela. No fim das contas, são muitas mães e muitos pais a cuidar dos rebentos.

Outro fato que sempre mexe com as mulheres é a extensa rede de apoio e cuidado com a gestante e depois, em seu período puerpério. Nunca fui mãe e não serei, mas consigo ter a noção de que um pai – que, se tivermos sorte, será participativo – e uma mãe não são suficientes para gerir uma nova criança em casa. Movimentos de rede de apoio com parentes, amigos e até vizinhos são tendências que parecem chegar para preencher o pesado trabalho que um filho ou uma filha trazem. Por mais lindo que seja todo o processo, o fato é que, no modelo vivenciado pela maior parte das pessoas no mundo, precisamos de ajustes.

Atente para o fato de que o senso de comunidade e parceria existentes no modelo matriarcal difere bastante do que muitos vivem cotidianamente nas melhores e mais bem intencionadas famílias. São vínculos consanguíneos seculares, de pessoas vivendo no mesmo território, onde se acredita que o novo bebê traz em si o retorno à vida daquele ancestral que se foi, desenhando uma linha de sacralidade, algo difícil de ser processado por nós.

Os relacionamentos mosuos

Para os mosuos, o relacionamento afetivo não preenche todas as camadas e cabe ao clã oferecer a rede de apoio, a propriedade, o alimento, o suporte. Eles vivem o que chamam de “mais puro dos amores”: se estão juntos é porque querem estar, não por necessidade ou por conveniência econômica. Quando se ama, se ama de verdade, e quando acaba o amor, as pessoas se afastam.

Um relacionamento entre os mosuos pode ser como os que conhecemos, durando décadas, existindo traição, mentira, brigas; pode haver término e pode haver retorno. Não é algo perfeito, pois continua sendo entre humanos. Não se está preso à tradição: há famílias nucleares mosuos com mãe, pai e filhos e uma nova residência. Quando estive por lá, me relataram o caso de uma senhora que acolheu o parceiro em sua casa, porque o clã dele havia diminuído e ele estava doente, sendo assim, foi acolhido pelo clã da parceira, que pode cuidar melhor dele.

Afinal, qual sistema é o melhor? Devemos largar tudo e querer viver como os mosuos, ou fechar os olhos e ouvidos, descartando qualquer coisa que ouse questionar o modelo vigente?

Meu convite a você é não buscar falhas no sistema dos mosuos, mas sim olhar para dentro e construir as suas certezas sobre o que quer viver. Depois, construir como objeto do seu amor o que você e o seu parceiro ou sua parceira realmente quiserem, pois cabe só a vocês decidirem o formato, os “sims” e os “nãos”, os “comos”, “onde” e “quando”.

Que tal tomar as rédeas das áreas mais difíceis de se viver?

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