O silêncio do corpo: uma jornada pelo meu jejum de nove dias
Carol Romano relata a sua jornada interior em um retiro de silêncio e jejum, e conta como esse processo pode ajudar no autoconhecimento e na superação de traumas
Na véspera de virar mais um setênio, mergulhei em um retiro de jejum e silêncio de nove dias. Não foi minha primeira vez. De tempos em tempos, na busca por pausar o frenesi do cotidiano e criar espaço para encontros verdadeiros comigo mesma, me permito esses momentos de introspecção.
Diante dos muitos silêncios possíveis, – apaziguar a voz, os barulhos da cidade, baixar o ritmo dos pensamentos-, o mais profundo deles, para mim, sempre foi o do corpo. Parar de comer por uns dias foi o jeito que encontrei para me ouvir e ter clareza do que faz ou não faz (mais) sentido na vida.
Na contramão do que se espera, baixar o volume de fora, nem sempre é sinônimo de paz interior. Nos primeiros dias em jejum e silêncio, podemos nos surpreender com o timbre ensurdecedor das vozes internas. Esse é um dos motivos pelos quais o início do processo costuma ser desafiador.
A boa notícia, é que aos poucos, a agitação mental vai se transformando em uma serenidade há muito esquecida. Enquanto o corpo se ajusta à ausência de alimentos, a mente e as autocobranças se rendem a um estado de extremo relaxamento e longos períodos de sonolência que culminam em muita lucidez.
Jejum é a ponte para a alma
Depois de passar algumas vezes pelo processo, entendi que o jejum não é apenas uma limpeza do corpo, mas uma ponte para a alma. Enquanto as toxinas físicas se dissipam, sinto as amarras emocionais se desfazendo.
Mágoas antigas e medos profundos, assim como as razões que me prendem a determinados comportamentos, emergem para serem acolhidos, compreendidos e finalmente liberados. À luz da consciência, é mais possível elaborar.
O ‘processo’, como carinhosamente chamamos, é uma imersão coletiva, e também guiada, em que seguimos uma certa rotina. Inclusive, somos alertados de tudo o que não devemos fazer, já que na ausência de alimentos, podemos ficar frágeis fisicamente.
Pelas manhãs acontecem as partilhas. A ideia é checar como todos estão. Além de garantir que os incômodos físicos estejam no nosso campo de visão, temos a oportunidade e o livre arbítrio de trazer nossas considerações para o círculo. Trazemos o que refletimos, enfrentamos ou descobrimos ao longo do dia anterior. Nas partilhas não conversamos, apenas nos ouvimos.
Tudo está interconectado
Escutar os outros participantes foi, para mim, muitas vezes, o estímulo que faltava para que eu pudesse completar o quebra cabeça do meu processo pessoal. Curiosamente, na medida em que nos entregamos para o ‘processo’ com o jejum, a egrégora do grupo vai se fortalecendo até que nem a mais simples colocação parece ser aleatória.
O que acontece ao longo dos nove dias, – o encantamento com o brilho do amanhecer, a paz do vento balançando a cortina do quarto, o cheiro da memória da infância, a leveza do que é preciso desapegar, a clareza do caminho a seguir – tudo nos convida a entender a dimensão sagrada da vida e a perceber a interconexão entre tudo o que coexiste.
Segredos como esses ficam registrados nas linhas do caderninho pessoal. Hoje, tenho uma coleção deles que me servem de oráculo, e consulto diante das escolhas e decisões que preciso tomar. Mas, de todos os estímulos que temos no ‘processo’ de jejum, a favor do nosso despertar, o meu favorito é, sem dúvidas, o sonho.
Mergulho nos sonhos
Alguns dias, na sequência das partilhas, interpretamos os nossos sonhos, revelando aspectos ocultos de nossas vidas e emoções. Esses insights são bússolas para a jornada de autoconhecimento e compreensão de nós mesmos.
A psicanálise nos ensina que os sonhos são a manifestação simbólica de desejos reprimidos, conflitos não resolvidos e aspectos ocultos da psique.
Ao explorar esses conteúdos latentes, acessamos camadas esquecidas ou negligenciadas no turbilhão do dia a dia, e somos convidados a confrontar medos antigos e profundos, assim como abraçar nossas vulnerabilidades e a totalidade de quem somos.
Em um dos processos, tive a oportunidade de perceber que ainda carregava as amarras de algo que vivenciei aos 9 anos e que achava que havia resolvido.
Dessa vez, meus sonhos me levaram a perceber e a flexibilizar autocobranças, provenientes de padrões familiares tão enraizados, que estavam não apenas me causando muita tristeza como bloqueando a possibilidade de começar um novo capítulo – bastante importante – da minha vida.
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Jejum é ciência
Além da dimensão psicológica, o ‘processo’ nos ajuda a colocar em prática o que a ciência fala sobre uma série de impactos positivos do jejum, essa prática milenar de purificação e renovação.
Pesquisas revelam que o jejum intermitente, por exemplo, demonstrou ser eficaz na regulação dos níveis de açúcar no sangue. Também promove a melhoria da sensibilidade à insulina e a saúde cardiovascular. Além disso, ajuda na eliminação de células danificadas e no rejuvenescimento celular, potencializando a longevidade e a saúde geral do organismo.
A sincronia entre os benefícios físicos, psicológicos e espirituais dessa prática (que ao meu ver deve ser feita com acompanhamento e autorização médica), nos lembra sobretudo da intrínseca conexão entre corpo, mente e alma. Ademais, como esse cuidado integral envolve atenção a todos os aspectos da nossa existência.
No ’processo’, o jejum absoluto acontece nos três primeiros dias. Depois voltamos a estimular a digestão por meio de água de coco, bebidas de frutas diversas bastante diluídas, e a cada dia aumentamos a espessura.
Fato é que, no silêncio do corpo, descobri uma chave para aquietar a mente e me reconectar com o meu ritmo natural. Longe das distrações do mundo, nesse processo de escuta profunda, encontrei – e espero seguir encontrando – respostas para perguntas que nem mesmo sabia que carregava.
Ao fim de cada jornada, o que observo é transformação e uma profunda paz interior, que brota da vontade de ser cada vez mais (apenas) quem eu sou e seguir as vozes do meu coração. Costumo retornar ao mundo barulhento carregando comigo a amizade do silêncio, como um segredo que me guia pelas águas tumultuosas da vida.
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