O sabe-tudo e a nossa ignorância
A fome pela totalidade do saber pode também nos colocar de frente para a nossa ignorância. E é essencial olhar para isso.
A fome pela totalidade do saber pode também nos colocar de frente para a nossa ignorância. E é essencial olhar para isso.
Adoro os filmes do Woody Allen. Quem não, não é mesmo? No filme Meia Noite em Paris, o escritor Gil (Owen Wilson), vai a Paris em busca de inspiração. E — coisas do cinema genial de Allen – viaja no tempo e acaba na década de 1920, quando convive com os grandes escritores da época de ouro, como Hemingway, T.S. Eliot, Gertrude Stein, o casal Zelda e Scott Fitzgerald. Além de Picasso, Salvador Dali e Cole Porter. Todos, gênios de seu tempo. Na vida real, Gil é obrigado a conviver com a mediocridade, (inclusive a própria) e, para aumentar seu pesadelo, com a arrogância intelectual. Entre as tramas paralelas tem a história de Paul (Michael Sheen), o cunhado pedante. Ao visitarem o museu Rodin, Paul discute com a própria guia (Carla Bruni) sobre a vida do escultor, que ele (acha que) conhece melhor que ela.
Aliás, ele entende de tudo. Arte, história, moda, vinhos… Tudo ele conhece mais que os especialistas, e faz questão de deixar isso claro. Na opinião de Gil, ele não passa de um pseudo-intelectual intragável. Os americanos têm uma expressão para isso: know it all. Com certeza você já viu alguém assim, e talvez tenha sido obrigado a conviver com um. O sabe-tudo. Aquela pessoa que não perde a oportunidade para mostrar sua erudição, que tem uma opinião sobre tudo, e que deixa claro que sua visão sobre um assunto é a definitiva.
Arrogância
Esse comportamento já foi tema de várias pesquisas sobre personalidade. Definida como arrogância intelectual, teve suas consequências avaliadas. Curiosamente, os arrogantes não são apreciados socialmente, mas são tolerados nos ambientes de trabalho, pelo fato de que eles, comumente, são bons em entregar resultado, talvez por sua notória autoconfiança. Nos anos 80, fez sucesso a série de televisão Cheers – Aquele Bar, ambientada em Boston, que, a exemplo do Friends, mostrava diálogos engraçados entre personagens. Um deles era o carteiro Cliff Clavin, um know it all. Frequentador assíduo do bar, ele sempre começava suas ponderações dizendo “os estudos revelam que”, ou “como todo mundo sabe”, e, com isso, desarmava um possível contra-argumento.
Curiosamente, o público simpatizava com Cliff, pelo fato de ele ser engraçado. E também porque todos conhecem alguém parecido com ele. Na verdade, “os estudos revelam que” esses tipos têm uma coisa em comum: não têm filtro sobre sua ignorância e supervalorizam o que sabem. Mas, “como todo mundo sabe”, não há ninguém no mundo que possa ser considerado dono de todo o conhecimento, e que não tenha espaços em branco em sua capacidade de avaliação crítica .
Não há demérito em não saber algo, mas é preciso estabelecer algumas diferenças. Não saber e não saber que não se sabe é desinformação. Não saber e achar que sabe é arrogância. Não saber, saber que não se sabe e não se importar com isso é que é a verdadeira ignorância. Um know it all é um misto dos três tipos. De certa forma, ele usa sua arrogância para esconder sua ignorância. Ele sabe que não sabe, mas se convence de que sabe para não ter que se dedicar a se informar.
Conhecimento superficial
Falando dos que sabem, uma vez por ano encontro meu amigo lisboeta Mário Romão, e nessa ocasião costumamos trocar um livro. Detalhista, ele costuma anexar à obra uma resenha pessoal. Neste ano, ele me deu A Morte da Competência (Quetzal Editores), de Tom Nichols. Não é um livro de gestão, e sim uma análise bem feita de uma característica de nosso tempo: o desprezo pelo conhecimento estruturado, a valorização do saber superficial e a cultura baseada em informações rápidas obtidas pela internet. Nichols diz que, se, por um lado, ela permite que mais pessoas tenham acesso a mais informação, por outro cria uma ilusão do conhecimento, quando, na verdade, está afogando-as em dados.
Os professores da Universidade de Cornell (EUA), David Dunning e Justin Kruger, publicaram uma pesquisa em que detectaram essa condição psicológica e a chamaram de “superioridade ilusória”. Seu portador, ao ter acesso ao conhecimento superficial, fácil de ser entendido, julga-se preparado como um especialista. O “efeito Dunning-Kruger”, ainda tem um componente agravante, que é o de dar ao especialista a sensação de que ele não é tão preparado nem tão necessário assim. Esta é a “inferioridade ilusória”. E agora, José?
Na verdade, o conhecimento pode ser visto como um halo luminoso em torno da cabeça de quem o possui, que, ao aumentar, aumenta também sua superfície de contato com a escuridão, que representa a ignorância. Assim, quanto mais sabemos, mais percebemos o quanto não sabemos. Essa era a visão de Sócrates, que, quando chamado de sábio por seu saber, dizia, com a calma de quem não tem nada a provar, “tudo o que sei, é que nada sei”, e dessa forma, definiu a primeira condição ao verdadeiro aprendizado: a humildade.
EUGENIO MUSSAK escreve neste espaço há 17 anos, e continua se surpreendendo com o quanto ainda há para se escrever @eugeniomussak
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