O medo da morte e a (nova?) normalidade
Enquanto os olhos contemplam a tempestade e a ausência de um destino à vista no Covid-19, a reflexão e a serenidade mantém as nossas duas mãos no leme
Enquanto os olhos contemplam a tempestade e a ausência de um destino à vista no Covid-19, a reflexão e a serenidade mantém as nossas duas mãos no leme
Depois de quase seis meses do mergulho em apneia no Covid-19, convém fazer um ponto de situação. Mais ou menos no início do mês de março de 2020, a vida — ou pelo menos a vida que se pensava que se vivia — fez vários giros de 360 graus. A rapidez do movimento deixou o mundo atordoado. Assimilado os giros, constatou-se que tudo tinha invertido o sentido. O desvario do sistema capitalista que projetava tudo para a frente, teve que — tal como acontece nos jogos pedagógicos — recuar várias casas. As famílias que faziam o caminho casa-escola, tiveram de voltar para casa com os filhos. Na esfera do trabalho, o caos instalou-se. Profissões e serviços foram divididos nas categorias “essencial” e “não essencial”, com fronteiras que até agora não são exatamente claras.
E nós, na nossa esfera existencial-física? Estávamos imersos no delírio da negação da morte, animados com a evolução da medicina e teorias transumanistas que diziam que estávamos muito perto de vencer a morte, que a eternidade nos esperava. Nós, os modernos, muito mais espertos do que Ulisses, estávamos prontos a dizer sim à proposta de Calipso: sim, queríamos a eternidade e a juventude. Mas de repente… eis que chega um vírus, sacode-nos do delírio e exibe o nosso corpo frágil e mortal.
Quem vem ao nosso socorro?
O que fazemos nos cenários de grandes catástrofes? Pedimos ajuda. E primeiro pedimos para quem está mais próximo. Um parente, um vizinho? Não se podia. Os outros passavam pelo mesmo e havia o receio de já estarem contaminados pelo vírus. E mais: os outros também tinham medo de nós, afinal também poderíamos estar infectados. Então, olhamos para o alto, de onde se espera que venha o socorro: o estado. “O que fazemos?”. A resposta: “Não há nada a fazer”. “Fique em casa”. Buscou-se o conforto das informações. Nenhum conforto. O digital e a disseminação das redes sociais dificulta a distinção entre verdade e mentira, fato ou manipulação.
Quem poderá vir ao nosso socorro? Ah! Claro. A ciência. As respostas também não vieram daí. Eles também precisavam de tempo para estudar o vírus. E nem mesmo sobre as medidas de proteção — como o uso de máscaras — havia consenso. Quando não somos capazes de enfrentar um inimigo, o que manda o nosso instinto? A fuga. Não há fuga possível, o vírus espalhou-se. O caos é global.
Depois de quase meio ano, não há um fim à vista. Porém, a instabilidade permanente não é viável. Não podemos caminhar sob constante ameaça. Então, enquanto a solução não vem, o mais sensato é minimizar os medos — ou pelo menos o medo maior. Talvez você nem tenha conseguido identificá-lo, mas ele está aí, velado, escondido; acompanhando tudo o que você faz. Trata-se do medo da morte.
Morrer? Eu?
Ok. Racionalmente já não nos sentimos tão indefesos diante da pandemia. Hoje já temos muito mais informação. Sabemos quais são os procedimentos e atitudes que minimizam o risco do contágio. Já aderirmos à regras de segurança e já conseguimos ser agentes ativos para nos mantermos sãos e para não infectarmos outros. Mas as mortes continuam, o medo da morte continua. E ninguém é indiferente ao número de óbitos atualizados diariamente.
O medo da morte é muito difícil de ser superado pelo ser humano porque esse não é um medo racional. O medo da morte com sofrimento é racional. Mas é racional por conta do sofrimento, não da morte. Como?! Um ponto precisa ser esclarecido: os seres humanos não são racionais. Há um esforço, uma inclinação para a racionalidade. Mas daí afirmar que somos seres racionais, vai um longo caminho. Os exemplos estão por ai, como a recente — só para ficarmos dentro da assunto — corrida para a compra de papel higiênico. E não foi apenas no Brasil, foi no mundo inteiro. Há uma explicação racional? Não.
Ainda estamos aqui
É por não ser um medo racional que Epicuro não consegue nos convencer quando afirma que “a morte não significa nada para nós. Ela é uma quimera, porque enquanto eu existo, ela não existe; e enquanto ela existe, eu já não existo”. Então o que é possível fazer? Como lidar com o espanto — e o escândalo — de que vamos morrer? Munidos de uma racionalidade sensível, podemos reduzir os níveis do medo. Há muitas estratégias para esse enfrentamento. Podemos ir desde informações práticas até reflexões filosóficas.
Primeiramente é preciso que se diga que morte não acontece apenas em momentos críticos. Pode-se morrer a qualquer momento. E no campo filosófico, a oferta é imensa. É tanta que Schopenhauer diz que a morte é a grande musa da filosofia. Afinal, podemos dizer que a vida “é a morte iminente em cada instante”. Essa consciência, apesar de expor a nossa fragilidade, tem um efeito colateral maravilhoso: mostra o quanto a vida é valiosa, justamente porque podemos perdê-la a qualquer momento. Por enquanto, agora mesmo, ainda estamos vivos. E não há motivo melhor, que mais mereça celebração, do que isso. Ainda estamos aqui. Ainda estamos vivos.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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