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O brilho secreto da despedida
(Foto: Gus Moretta/Unsplash) Despedir-se é esse ato silencioso e radical de abrir mão do controle
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Estive recentemente num consultório psicanalítico. E não era para fazer análise (juro). Mas acabei sendo atravessada por um quadro dramático, com estilhaços de vidro, que dizia: “Sentir dói, mas cura.” E de algum modo, entendi: a dor da despedida – de ilusões, de papéis vencidos, de sistemas exaustos – é o que abre caminho para a cura.

Vivemos um tempo de desilusões escancaradas. A nova geração não cultiva sonhos de revolução, mas de conservadorismo. A fachada polida de um Ocidente civilizado mostra suas rachaduras: o soft power envernizado pelo entretenimento de massa cede lugar ao cinismo transacional. A Alemanha revela (novamente) suas sombras. Os EUA perderam de vez o verniz. E o Brasil parece não ser mais o lar natural do sincretismo religioso, da alegria que une, e da receptividade com o diferente. Estamos nos despedindo das boas intenções imaginárias.

Mas toda despedida carrega, se tivermos olhos para ver, um convite à lucidez. A desidealização pode ser dolorosa – mas também é libertadora. Como na Psicanálise, onde o fim da fantasia abre espaço para o real. E o real é duro, mas vivo. O luto do fim não é um problema a ser superado, amortecido ou medicalizado. É algo a ser percorrido, um professor meio autoritário talvez, que nos ensina a valorizar o que restou, e o que ainda faz sentido.

Despedir-se é esse ato silencioso e radical de abrir mão do controle. Des-pedir é parar de solicitar o que não virá mais. Jamais. Como no giro dos Dervixes, que dança o estado alterado de consciência – não como fuga, mas como escolha. A despedida do ego que quer tudo seguro e explicado. Aliás, mudar-se, no fundo, é sempre mudar a si. E raramente mudamos pelo desejo – quase sempre mudamos porque temos problemas. Porque algo se rompeu. Porque fomos expulsos do conforto. Porque o chão faltou. É nesse abismo sombrio e avassalador – entre o deixar ir e o deixar vir – que o mistério da despedida se revela: um luto fértil, um escuro repleto de reinvenção.

Sim, despedidas doem. E muito. Mas a ausência também educa. É nesse não que a alma reaprende a escutar. É nesse fim que os ideais voltam a se apresentar – limpos, despojados de fantasia, carregando só o que é essencial. Claro que não é fácil. A manutenção artificial de relações mornas, ideias vencidas ou sistemas mofados custa caro. Mas custa mais não se despedir. Custa a alegria. A inteireza. A chance.

Despedir-se é também despedir-se da arrogância: percebi isso quando precisei deixar pra trás um personagem provocador e demasiadamente autoconfiante que eu mesma criei. Senti como humilhação – mas era a humildade, disfarçada de queda. E então lembrei do outono e do que me disse o terapeuta sonoro Thiago Amoroso, tememos a queda das folhas secas, sem notar que são elas que nutrem a raiz. O fim é o adubo do recomeço.

Às vezes, nos despedimos com raiva. Como se brigar fosse mais fácil que dizer adeus. Ou simplesmente facilitasse esse processo. Outras vezes, a alma avisa em silêncio, como naquela última ligação que fiz para minha avó. Dissemos pouco, mas ambas sabíamos. Mais tarde, descobri que as conversas não tinham terminado. Estavam guardadas nas cartas, no que restou, no que não racha nem some, como diz Flora Figueiredo: “O que fica pra trás, não sendo mentira, não racha, nem rompe, não cai. Ninguém tira.”

Despedir-se, em síntese, é um teste de consciência. É o momento de separar o que é passageiro do que é verdadeiro. E perguntar, sem medo: o que precisa mesmo continuar? Porque só quem se despede de verdade, vive de verdade. E talvez a vida não peça que saibamos viver – mas que saibamos partir.

Lembro da última cena de Before Sunset, quando Celine dança, despretensiosamente, ao som de Nina Simone. Jesse a observa em silêncio. Ela o provoca, leve e travessa: “Baby, you’re gonna miss that plane.” Ele sorri, e não responde. Mas tudo já está dito. O tempo suspenso. O fim anunciado. E, ainda assim, a música. O corpo dela gira como um dervixe à francesa, como quem aceita o destino com charme e entrega. Nina entra em cena como uma espécie de oráculo – sua voz rouca, imperfeita e visceral diz o que as palavras não suportam mais dizer. Aquela dança improvisada é um adeus que não se despede, um recomeço que não precisa ser nomeado. É ali, na sala daquele apartamento comum, sem grandiosidade ou promessas, que o fim deixa de ser ausência e se torna presença plena. Porque às vezes, o que fica, é justamente aquilo que deixamos ficar.

Epílogo: o que fica

Para transbordar, é preciso preencher-se.
Despedir-se não é fracassar – é recusar viver pela metade.
Ideias só fazem sentido quando se sustentam em ideais.
E quando o (auto)valor parece estar em baixa, que os valores permaneçam inegociáveis.
Adoro despedidas. Porque adoro recomeços. Partir de onde estou, sem sair de mim.

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