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Não tema o trapézio porque a rede está lá para lhe segurar
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Neste artigo:

Participar de uma “economia de favela” foi uma experiência antropológica na qual pude praticar o consumo colaborativo e a economia de compartilhamento de bens e serviços. Ao contrário que muitos pensam, não precisamos importar modelos incríveis da economia comportamental. A solução pode estar ao lado do seu prédio, ou na periferia da sua cidade. O desafio? Olhar para as pessoas que lá vivem com as lentes certas. Foi o que eu fiz e apresentarei aqui alguns achados da minha vivência em campo.

“O que se traz de um estudo de campo depende muito do que leva para ele”.

Evans-Pritchard, antropólogo inglês (1902-1973).

Ao iniciar a pesquisa de campo em uma favela localizada na Barreira do Vasco (na região portuária da cidade do Rio de Janeiro), em janeiro de 2011, entendi que era preciso estar naquela localidade o maior tempo possível para acompanhar diferentes situações sociais que ocorriam naquele espaço. Assim, durante todo esse período —que culminaria na minha tese de doutorado, anos depois —, aluguei três casas, em diferentes áreas daquela localidade, com o objetivo de melhor compreender as dinâmicas locais.

A experiência de morar no lugar e conviver com os moradores, despertou meu interesse pela favela como um todo. Entendi que, para compreender o acesso (distribuição), consumo (modos de uso, práticas, hábitos etc.) e compartilhamentos de bens e serviços públicos e privados (água, energia elétrica, TV a cabo e Internet), deveria entender a sua dinâmica sob vários aspectos e pontos de vista locais.

Eu não fazia ideia que ali começava uma relação empática, na qual, através da convivência contínua e aprofundada, desenvolvi vínculos sólidos verdadeiros. Não há pesquisa verdadeiramente antropológica que não mude o pesquisador. Eu fui afetada.

Deparei-me com uma favela dotada de profundidade temporal e organização política própria. Como em tantos outros agrupamentos sociais, também na Barreira do Vasco foi possível observar sistema de crenças e valores, sistema de parentesco, redes sociais e uma rica cultura material, movimentada por lógicas próprias de compartilhamento, consumo, dotadas de moralidades, formas de provisão e hierarquias de necessidades. Todos esses aspectos marcam o que é viver e morar em uma favela.

Sobre o conceito de “favela”

Importante situar como a favela, uma categoria nativa e sociológica bastante disputada em termos políticos e acadêmicos, assumiu outros contornos para mim ao longo da experiência etnográfica. Vale frisar que utilizei o termo “favela” porque é esse o termo que os interlocutores utilizam continuamente.

Antes da pesquisa de campo, eu era uma estudante de Antropologia convencida de que o problema da favela se resolvia plenamente no âmbito dos estudos urbanos, das teorias antropológicas voltadas para as sociedades complexas, geralmente vinculadas à questão da pobreza em contextos de desigualdade. Eram aglomerados que, apesar de complexos e urbanizados, sofriam com os estigmas relacionados às falhas do “desenvolvimento e progresso”. Sem desmerecer esta abordagem e todos os frutos que ela produziu no âmbito dos estudos urbanos recentes, não pude deixar de observar — como “moradora de favela”—, que a exclusividade desta perspectiva obscurecia aspectos cruciais que diziam respeito ao vigor, à riqueza e à singularidade positiva das relações sociais que ocorrem ali.

Em dado momento, pareceu-me que a favela não poderia ser explicada somente a partir da pobreza, da falta, da carência e da precarização.

Ao contrário, sob vários aspectos que pude constar, a favela apresenta expressões sociais que, apesar de informais ou ainda não legitimadas pelas instituições estatais, estão cada vez mais afinadas com a vanguarda do pensamento social e econômico contemporâneo. De muitas maneiras, sem mesmo ter consciência do seu estilo de vida calcado nas “sustentabilidades” – social, econômica, ambiental etc. – o moradores da favela já ultrapassaram e superaram dilemas da própria sociedade que continua a compreendê-la como um “problema social”.

Soluções provisoriamente permanentes

Do ponto de vista deles, os moradores das favelas, é fato que tudo começa como provisório e irregular, um jeito ou arranjo, mas que paulatinamente vai se “consolidando”, tornando aquilo que antes era uma solução “temporária” em algo permanente e até “institucionalizado”. Do mesmo modo, as novas “necessidades” são englobadas pelas formas “tradicionais” de acesso aos bens e serviços, fazendo com que novas “irregularidades” se apresentem na obtenção de novos serviços, como a TV a cabo e a Internet banda larga.

Os moradores de favela, embora ainda sofram com tais estigmas, se revelam como cidadãos que engendram dispositivos técnicos e sociais para superar as falhas que marcam a distribuição e o fornecimento, em suas casas e vizinhanças, dos chamados “serviços essenciais”.

Creio que esta é a questão fundamental do estudo que promoveu tanto interesse do público fora da universidade: mergulhar na vida cotidiana para traçar pontes de entendimento do modo de vida da favela diferente do que é mostrado nos noticiários.

É a partir dessa noção de “economias de compartilhamento” que pude entender as diversas formas de uso compartilhado daquilo que em outros contextos é particularizado e individualmente apropriado e utilizado. Há, ainda, coisas compartilhadas com o objetivo de obtenção de lucro financeiro; outras fogem à essa lógica e são simplesmente compartilhadas. Percebi que esses tipos de compartilhamento caracterizam e geram pertencimentos ao lugar e a redes sociais.

No caso da favela, as pessoas concebem e organizam o compartilhamento de energia elétrica e outros serviços quando, por exemplo, várias famílias partilham o mesmo medidor (ou mesma gambiarra) através de ligações “clandestinas”. Outra prática observada é a rede de empréstimos, tanto para bens duráveis como aparelhos domésticos (batedeira, chapinha de alisamento de cabelo, liquidificador, gaveta de freezer, panelas de grande capacidade, máquina de lavar roupa, varais, roupas e acessórios para ocasiões especiais), quanto medicamentos ou alimentos em horas de emergência (emprestar um ovo, um copo de açúcar, arroz etc.).

Muitas vezes, há aqueles que deixam de comprar certos objetos para si porque seu vizinho já o possui. Certos objetos, então, circulam por diferentes domicílios, atendendo a diferentes usuários.

A água também é um bem comumente compartilhado. Não é raro ver pessoas carregando baldes ou galões de água pela favela. A fonte do recurso é a torneira de algum parente ou vizinho ao lado pertencente a mesma rede social. As “borrachas” (mangueiras) ligadas em inúmeras torneiras criam caminhos e desenhos sinuosos no chão da favela, ligando vizinhos num emaranhado de canos maleáveis por onde passa o mais valioso dos bens.

O que o Prêmio Nobel em economia não vê

As “economias de compartilhamento”, no entanto, revelam mais do que técnicas e arranjos para suprir necessidades. Elas expõem os fios que formam a malha social da favela, com seus valores morais, suas dificuldades e também suas histórias de superação. Elas existem porque se constituíram como um valor importante dessas populações. As práticas diárias deixavam claro que somos feitos disso: relacionamentos.

Mais que isso, ao partilhar destas redes sociais nas quais me inseri e com as quais estabeleci laços sociais tão próximos que me senti determinadas vezes “cooptada” e fui percebida (e tratada) como parte delas, apesar de nossas diferenças socioculturais. Foi a partir deste vínculo que deixei de ser percebida como uma pesquisadora ou agente da “área social”– o que fazia menção ao meu campo de atuação profissional – e conquistasse uma identidade própria. Passei a ser percebida como alguém mais próximo, por vezes apontada como “de casa” ou “das nossas”.

Através desta intimidade conquistada pude perceber e fazer parte das “economias de compartilhamento”, uma forma de reciprocidade na esfera íntima onde ocorrem compartilhamentos de objetos comuns e corriqueiros a serviços como o cuidado de crianças e idosos.

A “economia de favela” tem muitas lições a serem observadas, aprendidas e praticadas se forem de fato pesquisadas e vivenciadas sem julgamentos e preconceitos. Os moradores de favela me ensinaram a enxergar o que a sociedade do asfalto nunca conseguiu: viver o compartilhamento na sua essência, onde o coletivo se sobrepõe ao indivíduo em muitas situações. Eu não sou mais a mesma. E nunca conseguiria ser.

A Barreira do Vasco está na vanguarda da economia unindo a economia social e de mercado ao mesmo tempo.

Enquanto professores doutores estrangeiros ganham Prêmio Nobel por tratar da economia social, as favelas praticam desde a década de 50 a teoria na prática, promovendo senso de coletividade de uma maneira orgânica. Assim, desenvolveram regras, valores culturais e éticos até hoje mantidos e estruturados em redes sociais de assistência mútua.

Se um cai do trapézio, um dos “nossos” estará lá para ampará-lo e não deixá-lo sucumbir.

Leia todos os textos da coluna de Hilaine Yaccoub em Vida Simples.


HILAINE YACCOUB (@hilaine) é mestre e doutora em Antropologia do Consumo. Como pesquisadora, palestrante e consultora, há 20 anos aplica a Antropologia Estratégica nas empresas traduzindo comportamentos, movimentos culturais e lógicas de consumo das pessoas para a construção de soluções, entendimentos e tomadas de decisão assertivas.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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