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Livre-se da ditadura da felicidade!
Alex Block | Unsplash
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Não há nada que me mova contra o pensamento positivo, o que me incomoda é a sua banalização. Já fui uma combatente incansável da crença infantil de que “querer é poder”. Entre aquilo que queremos e o que podemos, há inúmeras ações que comportam variáveis que não controlamos. E é sempre útil considerar que grande parte dos nossos “quereres” não são tão bons quanto pensamos, nem lícitos, nem justos e, finalmente, não são possíveis. Se todos os dias você repetir em frente ao espelho “eu quero falar francês” e não pegar em um único livro, jamais falará o idioma de Victor Hugo. E quando é um querer imenso, legítimo, coletivo? Também não. Na eminência de um desastre aéreo, imagine quantas pessoas não desejaram intensamente que aquilo não acontecesse.

E não é simples implicância. É a vida que está em causa. As mistificações são como névoas que turvam a visão e impedem o estar no mundo com propósito e com sentido. Recentemente surgiu uma nova praga: a ditadura da felicidade. É quase um fanatismo. Para onde quer que se olhe, a felicidade está a venda e como item de primeira necessidade. Tudo serve para promovê-la, desde viagens, passando por produtos de beleza, livros e até cursos e workshops. E como se não bastasse, a felicidade é materializada em produtos. E como os EUA é o país inspirador desse movimento; canecas, almofadas, chinelos e uma infinidade de objetos de decoração surgem no mercado na língua-mãe: Be Happy, Smile, Don´t worry, be happy. E essa origem não é sem razão. Na constituição norte-americana, entre os direitos fundamentais do homem consta “direito à busca da felicidade”. O estado reconhece que o homem tem direito a tomar as ações que acredita serem necessárias para alcançar a felicidade.

A questão é que a felicidade — ou a alegria, para quem é mais prático —  é componente e resultado de percursos, de trajetórias percorridas. Portanto, toda indicação deve ser sobre os meios para a felicidade e não a felicidade em si. O caminho que leva à vida boa (à felicidade) é o objeto da filosofia de todos os tempos. Para os gregos antigos, a trajetória humana precisa comportar quatro virtudes essenciais (ou formas de agir): a temperança, a coragem, a justiça e a sabedoria. Aristóteles aumentou a lista e sugere que no exercício das virtudes se evite todos os tipos de extremos, para mais e para menos. É o caminho do meio, do equilíbrio. Porém, mais importante do que regras de ação, a ideia a reter é que o  homem — devido a sua natureza gregária — sente-se bem, sente alegria, sente felicidade quando age bem, quando relaciona-se bem com o outro. A alegria e a felicidade conta apenas como resultado, como consequência. Se você tiver que escolher entre agir bem e se sentir mal e agir mal e se sentir bem? A recomendação do filósofo é “escolha a boa ação”. É verdade que alguns sentimentos são difíceis de controlar. Mas, a recomendação é para que se pratique a temperança, a sabedoria, a coragem e a justiça e a felicidade vai surgir, pois todos os bons sentimentos — felicidade, alegria, satisfação, plenitude ­­— gostam de dividir a cama com as ações virtuosas.

À partir dessa base, surgiram outras teorias. Mas a essência grega continua atual: o foco é no caminho. Porém, a sociedade de molde capitalista centra-se apenas na felicidade como um produto pronto para consumo imediato. As livrarias estão abarrotadas de livros sobre positividade, otimismo, boa energia. A felicidade é um imperativo e deve ser perseguida a qualquer custo. Mesmo a fingida, como maquiagem social; mesmo a artificial, a custa de medicamentos. Há uma espécie de ditadura da felicidade. Prega-se que a felicidade está mesmo a nossa frente, basta estender a mão e colhê-la. Ela está ao alcance de todos e quem não está feliz ou não demonstra felicidade é visto como um derrotado. As pessoas que passam por fases difíceis são obrigadas a fingir para escapar do policiamento. Outras que não tiveram a sorte de serem bem-humoradas por natureza sentem-se inadequadas no modelo reinante.

E, claro, não sou contra a felicidade. É o bem supremo que a humanidade, diariamente, persegue e deseja. E não sou contra a alegria. Ela é contagiante, espalha-se, faz bons ambiente. Mas essas não podem ser criadas artificialmente. Não se pode dizer a alguém para ela ficar alegre. Não se pode fingir que a vida é boa quando ela não é. A alegria espontaneamente sentida é brilhante. Mas ela não é mais importante do que agir com coragem quando se tem medo. Ela não substitui o valor e o aprendizado que vêm da vivência de uma tristeza. Rir pode não ser o melhor remédio. Às vezes, precisamos da ira para impulsionar a luta e a ação necessária. Às vezes, o don’t worry, be happy, agrava o problema e falha a alegria esperada.

Muitos se espantam ao ver suicidas em fotos sorridentes nas redes sociais alguns minutos antes do ato. E aqui um ponto importante: a prática diária de sorrisos, não traz alegria. Já as virtudes tem a sua força na prática. Quanto mais exercitamos a paciência, mais pacientes nos tornamos. E ainda melhor: as virtudes não pedem para fingirmos o que não somos. E nem diz para enganarmos as pessoas ao nosso redor. Fingir alegria é como usar uma máscara, é como se esconder. É falsear a nossa presença no mundo. É assumir que os que estão ao nosso lado não são capazes de lidar com a nossa vida interior, que eles não têm maturidade para encarar as nossas fragilidades, a nossa humanidade. E em último nível é negar a vida como ela é, com seus momentos de tristezas e de alegrias. Para buscarmos a felicidade e todos os predicados de uma vida boa ­— como amar e ser amado — o mais indicado é cultivar a honestidade e a transparência, ao invés da alegria. Como anfitrião, você pode dizer a um convidado “sente-se e fique à vontade”, mas você não pode dizer “sente-se e fique feliz”.

Nesse tópico, a Europa ainda leva vantagem sobre as Américas. Os suíços e os dinamarqueses figuram no top do ranking que mede o índice de felicidade dos seus habitantes. No entanto, não são famosos pelas demonstrações de alegria. No velho mundo não há a patrulha do pensamento positivo, não há a obrigação da boa energia. Aqui você pode ser triste e infeliz à vontade, ninguém te incomoda. Você pode percorrer  em paz, a sua maneira, todo o caminho. E não há felicidade maior do que esta.

MARGOT CARDOSO
(@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.

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