Finalmente uma prova concreta do que realmente traz felicidade
A pergunta “como viver feliz e saudável” continua a ser feita. As respostas são diversas, mas igualmente insuficientes. O clássico “ser rico”, até o moderno “ter fama” já não convencem mais ninguém
A pergunta “como viver feliz e saudável” continua a ser feita. As respostas são diversas, mas igualmente insuficientes. O clássico “ser rico”, passando pelo autocontrole do mindfullness, até o moderno “ter fama” já não convencem mais ninguém.
Epicuro de Samos já deu o caminho das pedras há 300 anos antes de cristo. As ideias desse filósofo grego foram tão importantes que transformaram-se em corrente filosófica, o epicurismo. Apesar da insistência — há inúmeros autores que fazem uma atualização dessa filosofia para os dias de hoje — Epicuro tem poucos adeptos. E por que? Epicuro aponta que a felicidade é um projeto de longo prazo. É tempo demais. De costas voltadas para a sabedoria grega, as buscas continuam. Todos os anos surgem novas teorias e estudos, mas nenhum serve. O que se quer é uma receita mágica para a saúde e a felicidade.
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Muitos buscam as respostas em modelos de vidas bem-sucedidas. Uma fórmula pronta testada por outro, basta aplicá-la na nossa vida. Eis a razão do sucesso das biografias. Mas também não funciona. Além de cada vida ser única — o que serve para um não serve para outro — é muito difícil apreender a vivência do outro. Quase tudo que sabemos sobre uma pessoa é através do que ela lembra do seu passado. Ora, o olhar em retrospectiva não é fiável, a maior parte do que nos acontece, esquecemos. E depois, mesmo quando não esquecemos, a memória é seletiva, é criativa e é alterada pelos nossos dramas.
Quantas vezes você ouviu alguém negar uma memória: “Jura que eu disse isso? Não me lembro”, “Tenho certeza de que eu não disse isso”. A minha sequela de longos anos como repórter que não grava entrevista — apenas anoto o essencial num bloco de notas— é uma memória precisa. Para mim é péssimo — há muitas coisas que eu realmente queria esquecer — mas para os outros é ótimo. Sou uma espécie de arquivo vivo dos meus amigos. Porém já notei — com grande assombro — que a memória de um evento específico vai se alterando ao longo do tempo. Fatos que presenciei ou que foram relatados em primeira pessoa — e alguns estão registrados em reportagens — tem a sua narrativa completamente alterada ao longo dos anos e pelo próprio protagonista! Não. A memória humana não é confiável.
Muita sorte!
E se houvesse um estudo que acompanhasse várias pessoas — classe social, cenário e oportunidades — mapeasse suas trajetórias, por escrito — desde a adolescência até a velhice — e, quase no fim da vida, se verificasse quais eram felizes e saudáveis e porquê? Tendo em conta a expectativa de vida — entre a 75 a 80 anos — seria um estudo que levaria décadas. As estatísticas apontam que projetos desse tipo duram no máximo 10 anos. As razões são muitas: falta de financiamento, perda de foco, participantes que desistem e, principalmente, os próprios pesquisadores morrem sem deixar substitutos…
A boa notícia é que apesar de todos os acidentes, num misto de sorte e persistência de várias gerações de pesquisadores, um estudo vingou. Trata-se do Harvard Study of Adult Development, da Universidade de Harvard. Possivelmente, o estudo mais longo sobre a vida humana já feito. Durante 75 anos, pesquisadores acompanharam a vida de 724 homens. Desde 1938, ano após ano, foram registradas informações sobre trabalho, vida familiar e saúde. O grupo estudado está dividido em dois grupos distintos. O primeiro reúne alunos do segundo ano da Universidade de Harvard — todos terminaram a faculdade e a maioria participou na Segunda Guerra Mundial; O segundo grupo é composto por adolescentes de bairros pobres de Boston — a maioria vivia em habitação popular e alguns eram de famílias desestruturadas.
Liderado pela Faculdade de Medicina de Harvard, o estudo é multidisciplinar — abrange desde estilo de vida até saúde física. O que se sabe é que esses jovens tornaram-se adultos e seguiram diversos caminhos na vida. Tornaram-se operários, advogados, pedreiros e médicos. Um deles tornou-se presidente dos Estados Unidos (John F. Kennedy fez parte do estudo); alguns sucumbiram à adição (álcool) ou desenvolveram transtornos mentais, como a esquizofrenia.
Hoje, 75 anos depois, o estudo ainda está em andamento. Aproximadamente 60 dos 724 integrantes ainda estão vivos — a maioria está na casa dos 90 anos — e continuam a participar do estudo. A cada dois anos, a equipe de pesquisadores envia questionários e entrevista-os em suas salas de estar. Recolhem informações médicas, coletam sangue, escaneam cérebros, filmam a família. O estudo vai no quarto diretor, atualmente é o psiquiatra e psicanalista Robert Waldinger, professor de Medicina de Harvard. Para além de coordenar o estudo, o psiquiatra divulga os resultados para o mundo. A sua palestra no TED — onde ele reúne e comenta as conclusões desse estudo — está entre as 10 mais assistidas de todos os tempos.
Diz logo!
E quais são as lições extraídas das milhares de páginas de informações sobre essas vidas? Por uma questão didática, pode-se reduzir para três conclusões fundamentais. Não. Riqueza e fama não passam nem de raspão. Após 75 anos de olhar atento, descobriu-se que o que mantém a felicidade e a boa saúde é…. Bons relacionamentos. As conexões sociais são fundamentais para a saúde mental e física e, a sua ausência, a solidão, literalmente, mata. Pessoas mais conectadas com a família, amigos e a comunidade são mais felizes, fisicamente mais saudáveis e vivem mais dos que os solitários. A experiência da solidão é tóxica. Quem vive mais isolado do que gostaria, é menos feliz, sua saúde decai precocemente na meia idade, seu cérebro se deteriora mais cedo e, portanto, vive menos.
Aqui, um fato preocupante, extraestudo. Nas últimas décadas, no mundo inteiro, cresce o contingente de solitários. E para quem pensou no “poder” das redes sociais… Esqueça! A questão é profundamente existencial, não se trata de ser solteiro ou casado. Podemos nos sentir miseravelmente sós num casamento ou num grupo de amigos. E imensamente acompanhados no ato de estar só.
Daqui decorre, o segundo aprendizado do estudo. Não é a quantidade das relações que conta, é a qualidade. Uma balde de água fria para os adeptos do “milhão” de amigos ou “antes mal acompanhado do que só”. Cultivar e viver relações ruins e conflituosas são golpes mortais na saúde e no bem-estar. E casamentos problemáticos e sem afeto podem ser piores do que um doloroso processo de divórcio.
Envelhecer bem
No estudo também foi possível medir a qualidade do envelhecimento. Os homens que envelheceram melhor não eram os que tinham os melhores níveis de colesterol, mas os que estavam satisfeitos nos seus relacionamentos. E mais: quem estava satisfeito no relacionamento aos 50 anos, era mais saudável aos 80. Parece que relacionamentos bons e íntimos atuam como proteção para as mazelas do envelhecimento. Aqueles que viviam em relações felizes, mesmo nos dias de dor física, mantinham o bom humor. Porém, os que estavam em relacionamentos infelizes tinham o problema agravado — a dor física era intensificada pela dor emocional.
E, finalmente, o estudo revelou um terceiro benefício. Os bons relacionamentos não protegem apenas o nosso corpo e a nossa mente, protegem também os nossos cérebros. Quem vivencia um relacionamento íntimo e estável aos 70, 80 anos — onde há a certeza de que se pode contar com o outro em caso de necessidade — preserva as memórias por mais tempo. Aqueles que tinham a percepção de que não podiam contar com a outro, o declínio da memória veio mais cedo. A entendimento sobre o que é um relacionamento de qualidade pode gerar alguma dúvida. Será que o meu relacionamento tem essa qualidade que protege e traz saúde e felicidade? Os relacionamentos bons não têm que ser tranquilos o tempo todo. Casais — de qualquer idade — podem discutir desde que não comprometa a certeza de que podem contar um com o outro.
“Eu disse isso”. Assinado: Epicuro
Ok. A chave para a vida saudável e plena são as relações. Epicuro já disse isso. O filosofo grego deu muita ênfase a importância da rede de amigos (Epicuro não contemplou as relações amorosas por razões óbvias, na Grécia antiga, o papel da mulher era muito limitado). Mas porque não damos importância a esse remédio tão simples? Estamos esperando que alguém descubra algo mais fácil e mais rápido, um atalho para a felicidade. Afinal, construir e manter relações é um caminho demorado e difícil. Cuidar dos amigos e dos nossos cônjuges exige cedência, paciência, humildade. E pior, é trabalho que nunca cessa, é até o fim da vida. Não há outro caminho.
Qual é a grande conselho de Robert Waldinger? Nunca é tarde. Você pode ter 25, 40 ou 60 anos, não importa. Comece hoje mesmo a cuidar das suas relações. Aperte os laços da sua relação amorosa, aprofunde a intimidade de uma relação superficial; marque cafés com amigos, reative conexões perdidas; convide um vizinho para uma caminhada; contate um membro da família que se afastou. Waldinger cita Mark Twain. Ao recordar sua vida, escreveu: “Não há tempo, a vida é curta demais para ser desperdiçada em discussões banais, desculpas, amarguras, tirar satisfações. Só há tempo para amar, e mesmo para isso, é só um instante.” Não perca tempo! Boas relações. Boa saúde. Boa vida!
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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