Felicidade para principiantes: um filme sobre a magia de caminhar
Em uma das curvas da vida, nossa colunista Juliana Reis acabou trocando uma viagem para caminhar por uma estadia no hospital. Mas nem por isso ela deixou de viajar. Aproveitou para curtir as atualizações de uma amiga que continuou o percurso sem ela e o filme "Felicidade para Principiantes", que recomenda nesta coluna.
Cerca de dois anos atrás, por artimanha dos algoritmos, fotos de caminhadas de longa distância, dessas como Santiago de Compostela, começaram a aparecer nas telas das minhas redes sociais, mexendo com meu espírito de peregrina. Já fazia tempo desde a última vez que me aventurei em uma jornada a pé. Relutei em pesquisar a respeito, pela frustração de estar sem recursos para pegar mochila e cajado e sair estrada afora novamente.
Apesar disso, não resisti e acabei descobrindo que uma nova rota de peregrinação no Brasil, o Caminho Sagrado, estava se abrindo no sul de Santa Catarina. Mesmo sem saber como me custear, decidi fazer a viagem. O próximo grupo sairia dentro de 6 semanas.
Enquanto removia a poeira da mochila, recebi a ligação de uma amiga, Suellen, querendo indicação de uma caminhada na qual pudesse se isolar para cicatrizar um luto. Habituada a sempre liderar e ajudar os outros, agora queria apenas ser guiada.
Assim, tudo se encaixou. Iríamos juntas. Consegui o apoio de uma marca que topou patrocinar a iniciativa. Organizamos equipamentos, alinhamos calendários de trabalho, começamos o treino.
Mas, de forma inesperada, o caminho se fechou para mim.
Uma questão de saúde há tempos negligenciada assumiu o comando dos meus planos. Há anos tenho lidado com essa tal condição que roubou parte da minha essência, minando minha confiança e transformando meu cotidiano em algo pesado e cheio de ressentimento.
Logo, meu chamado mudou de direção.
Enfim, no mesmo dia em que coloquei minha mochila no carro rumo ao hospital, Suellen lançou a dela sobre os ombros rumo ao Caminho Sagrado.
O que aconteceu nos dias seguintes foi catártico. Para ambas.
Enquanto eu enfrentava dores agudas no hospital, Suellen passava por algo semelhante, só que de um jeito diferente. Logo no primeiro dia de caminhada, ela já tinha bolhas incrivelmente doloridas nos pés.
Minha amiga fora retirada de seu mundo confortável e posicionada frente a frente com dores emocionais das quais há tempos se esquivava. Esperta, percebeu que confrontá-las seria um catalisador de mudanças. Para isso, adotou um ritmo próprio, mais lento, que divergia do grupo — atitude que emergia justamente da dor física.
Já do outro lado da história, eu era realocada, após a etapa hospitalar, em um mundo acolhedor: a casa dos meus pais. Para ser cuidada.
As duas estavam em processo de recomeço em trilhas distintas. Suellen lá fora, por meio do movimento. Eu, através da pausa, num refúgio.
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Nesse contexto, mais uma vez surgiu outra oportunidade de viagem. Embora eu não pudesse participar pessoalmente, teria a chance de testemunhá-la na telinha, em casa. Era um filme.
Felicidade para principiantes (2023), lançado na Netflix, conta a história de Helen Carpenter, recém-divorciada que, a fim de se curar de um casamento pra lá de errado e resgatar a pessoa divertida que um dia foi, decide fazer a deslumbrante Trilha dos Apalaches (EUA). Então, junta-se a um grupo de caminhantes liderado por um cômico guia passivo-agressivo.
Essa comédia leve e despretensiosa me remeteu à amiga, lá caminhando. A protagonista, afinal, tinha um pouco de nós duas. Não é um filme de viagem genial, e resgata alguns clichês do gênero, sim. Mas vale ser visto pelas seguintes razões:
A identificação com os personagens e seus problemas
Os companheiros de Hellen estão atrás do poder transformador das explorações físicas e emocionais. Seus lemas individuais — uns mais pesados, outros só meio bobos — ressoam na gente. Não demora e logo estamos refletidos em suas narrativas existenciais. Especialmente, quando um deles falha miseravelmente na missão.
O reconhecimento da viagem como ponte para um novo “eu”
O velho clichê dos filmes de viagem — o cara que vai viajar em busca de respostas e alívio emocional — está aqui. Mas e daí? Quem nega que viagens são empurrões para o crescimento pessoal?
Se um dos peregrinos diz estar na trilha porque adora desafios — embora lide mal com frustrações e queira mudar isso “mergulhando em dor e decepção” durante a jornada — há também quem tenha escolhido só apreciá-la. Há quem pretenda parar de fingir ser quem não é, ou quem foi aproveitar a última chance de enxergar o mundo. A lista de metas é grande. Legal é notar como cada um confia à viagem o poder de transformar o alguém do início em alguém melhor no final.
Como o pré-julgamento está sempre nos rondando
Reconhecer que prejulgamos pessoas é um passo crucial para construir relações mais autênticas. A reflexão “todo mundo é mais do que parece ser”, soprada pela personagem mais otimista, captura essa realidade com precisão. O momento em que o grupo atribui apelidos uns aos outros com base em primeiras impressões reflete nossa própria tendência de agir dessa mesma forma tão superficial.
Quantas vezes nos deixamos influenciar pela primeira impressão e pela aparência ao decidir se alguém “merece” fazer parte do nosso círculo de relações?
Na trilha com esse grupo excêntrico somos convidados a observar nossos preconceitos e a dar às pessoas a oportunidade de revelar suas verdadeiras identidades, em vez de reduzi-las em meras suposições.
Nossos dias são cheios de pequenas alegrias, mas elas podem passar despercebidas
Estar livre da obrigação de usar desodorante; acordar de manhã com o rosto fresco pelo sereno da madrugada, mas o corpo aquecido no saco de dormir; o aroma do café rústico que paira sobre o fogareiro do acampamento… Cada dia mais próximos, os personagens caminhantes passam a compartilhar suas fontes de alegria: doces momentos escondidos nas entrelinhas do dia a dia. De coração aberto, talvez encontremos várias alegrias simples e diárias — mesmo sem estar viajando.
Viajante que vai, viajante que volta
“Estou voltando, e regresso maior do que quando parti”, disse minha amiga ao concluir o Caminho Sagrado. Devolveu o bastão de apoio que lhe emprestei, e partilhou as histórias de sacrifícios e descobertas que converteram suas dores em aprendizado. Falei sobre o filme. Notamos passagens curiosamente similares.
Teria sido o filme uma janela aberta no tempo e espaço, permitindo-nos, de certa forma, caminhar juntas?
Fantasia à parte, penso que se estivéssemos lado a lado fisicamente, teríamos modificado nossas oportunidades e o destino. Ela reconheceu que o mundo ganhou mais uma peregrina. E daqui, do meu canto, esta peregrina que escreve, aceitou a pausa forçada pela vida e descansa para, em breve, renascer como a pessoa e a viajante determinada e autoconfiante que um dia já foi.
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