Estar no presente é uma arte que se treina
Fuja da dispersão e do excesso de estímulos e busque refúgios de vida verdadeira. Ser. Simplesmente ser. Parece ser o ato mais fácil do mundo. Estar consciente do aqui e do agora, nada mais. O problema é mesmo o “nada mais”. Nesse exato momento, junto com este texto, muitas coisas estão passando pela sua […]
Fuja da dispersão e do excesso de estímulos e busque refúgios de vida verdadeira.
Ser. Simplesmente ser. Parece ser o ato mais fácil do mundo. Estar consciente do aqui e do agora, nada mais. O problema é mesmo o “nada mais”. Nesse exato momento, junto com este texto, muitas coisas estão passando pela sua cabeça. “Eu preciso de uma xícara de café”. “Onde vou almoçar hoje?”. “Não posso esquecer de retornar a chamada de X”. “Hoje, preciso — mesmo — ir ao supermercado”. Vê? É sobre isso que falo. Quem já fez meditação guiada, experimentou essa dificuldade.
O que é pedido? Que você concentre todos os seus sentidos numa única ação: respirar. “Sinta a respiração passando por todo o seu corpo”. O objetivo é praticar uma única ação e, assim, finalmente descansar a mente, relaxar. Você começa. Vem um pensamento; uma perna dói; outro pensamento; desconforto… O instrutor tenta nos ajudar e recomenda: “não se apegue a nenhum pensamento, deixe eles irem”. E eles não vão…
O bom caçador
Nesse momento, trava-se uma luta contra a nossa natureza, porque o cérebro humano tende a dispersão: Trata-se de um recurso de sobrevivência, uma vantagem conquistada no nosso passado evolutivo. Um homo sapiens com grande capacidade de concentração poderia ter uma excelente pontaria, mas enquanto o seu cérebro estava focado no alvo, não sobrava recurso para detectar a aproximação de um tigre às suas costas. E assim, os concentradíssimos bons atiradores não sobreviveram para passar os seus genes adiante. A seleção natural favoreceu os cérebros que equilibravam as duas ações: foco para o alvo e dispersão para observar o terreno.
E essa vantagem continua valendo. O que ocorre é que a equação mudou de sentido e caminha a passos largos para o extremo oposto. Com o aumento de estímulos — ritmos de vida — estamos imersos na dispersão. O nosso cérebro corre de um lado para o outro, sem descanso. E nas crianças, com o seu cérebro em formação, o estrago é ainda maior.
Peixe vermelho
Já mencionei aqui nesse espaço, o estudo que se transformou em livro do pesquisador francês Bruno Patino, intitulado A civilização do peixe-vermelho (sem tradução no Brasil). Segundo ele, os engenheiros da Google calcularam o tempo de atenção do peixe vermelho (o mais comum nos aquários domésticos): oito segundos. Após os oito segundos, o universo mental do ser vermelho reinicia-se. Também foi calculado o tempo de atenção das novas gerações que estão crescendo diante do visor: nove segundos! A preocupação de estudiosos como Bruno Patino é legítima. Como o peixe, julgamos descobrir um novo universo a cada momento, sem nos apercebermos da infernal prisão a qual confiamos o recurso mais precioso de que dispomos: o nosso tempo.
Presa fácil
Isso porque os nossos pensamentos estão à solta, alienados do tempo. A nossa mente, incapaz de conter o excesso de apelos e o fluxo de pensamentos, vagueia em todas as direções, entre o passado e o futuro. O antes e o depois, sem nunca estar no agora. Se já tendemos à dispersão, como não sucumbir às ardilosas iscas das empresas que fazem a sua fortuna com os nossos cliques? Como seremos nos próximos anos? Seremos incapazes de esperar, de focar e estaremos à deriva sob controlo de algoritmos? Não chegaremos a esse ponto porque o corpo dá o alerta, adoecemos. Quais são hoje os grandes males globais? As doenças da mente. O excesso de passado: a depressão. O excesso de futuro: a ansiedade.
Um novo caminho
Não se trata apenas de fugir do frenesi das distrações, é preciso ir além. Novos tempos exigem também novas sabedorias. O que fazer? Bruno Patino sugere algumas saídas, a primeira delas é estabelecer “zonas não conectadas”. O pesquisador sugere mesmo algo semelhante à “zona de não fumadores”, pois trata-se mesmo de uma questão de saúde pública. Um exemplo? A escola deveria ser uma “zona não conectada”. Vale dizer que a mesma opinião é partilhada pelos empreendedores de Silicon Valley, que matriculam seus filhos em escolas sem tecnologia”.
Enquanto não há legislação para nos proteger, devemos nós mesmos tomar a frente. O que não é fácil, já que qualquer caminho em direção ao abrandamento é um ato de resistência — seja qual for a área, como o consumo, por exemplo. Isso porque a tecnologia não é a única responsável. O nosso modelo de sociedade tem a aceleração como principal atributo.
Dom Quixote
Ir na contramão é cansativo, mas não é um caminho solitário. Já há muitos insurrectos. Há as propostas da meditação, yoga e técnicas de mindfullness; novas formas de relação com o ambiente, como a permacultura e o slow movement. Para um respaldo teórico, a filosofia estoica pode ser um bom ponto de partida. Cada ensinamento é um convite para a vida no instante em que ela é vivida. Sêneca propõe um olhar para dentro, intensificar a reflexão sobre como e para onde a nossa vida caminha. Talvez nesse exercício você precise da ajuda da escrita. Ela faz com o corpo e mente se harmonizem numa única tarefa. O filósofo recomenda que você escreva sobre o seu dia. O que você queria fazer hoje e o que realmente fez? Parece banal, mas você terá a real dimensão do seu grau de dispersão.
Porém, não é necessário grandes preparos. Você pode começar já a colocar em prática pequenas e solitárias tarefas. Limpar a casa, arrumar gavetas, organizar coisas. Pequenas rotinas domésticas funcionam como rituais de limpeza da mente, um detox para a dispersão e o excesso de estímulo. Com essa prática, arrumamos também a casa que está dentro de nós. Cozinhar também pode ser um ritual se feito como um propósito. Você olha para os ingredientes, observar a melhor forma de cortar um legume, segue um método de preparo.
Mesa para um
Se a casa não for a sua onda, tudo bem. Convide a si mesmo para almoçar ou jantar. Não. Não é deprimente e nem triste e muitos profissionais psi recomendam que você reserve — pelo menos uma vez por semana — “mesa para um”. Vantagens? Você está livre para si mesmo, sem interlocutor, sem ruído externo… Baixa-se o nível de estímulos, o seu cérebro descansa. Porém esse exercício só é eficiente se você estiver focado no momento. Aprecie o restaurante e a sua presença ali. Foque num único alvo: o cardápio. E depois desfrute dos sabores. É você e o seu corpo.
A vergonha social pesa? Vá ao cinema sozinho. Ali, no escuro, o olhar dos outros não te alcança. E quanto mais a sua rotina for cheia de estímulos, mais você precisará desses momentos. Pesquisadores afirmam que precisamos de duas horas por dia de solidão para desconectar dos problemas e da agitação de trabalho.
E, ganho extra: nesses períodos de desligamento, você sai da manada, e avança mil casas em autoconhecimento e satisfação com a vida. Redescobre-se e enxerga novas perspectivas. É como ampliar o mapa, você encontra recursos dentro de você que não conhecia. E assim, com pequenos atos de resistência, caminhamos lentamente para estar simplesmente no “aqui e agora”. A areia da ampulheta não para de cair, é preciso viver. Não no passado, que nos aprisiona; nem no futuro, que é um promessa; mas neste instante presente, o único que temos, o único que é realmente nosso.
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