Essa definição de criança saudável pode surpreender você
É certo que uma criança saudável pode ser muito colaborativa, mas não será pelos mesmos motivos da criança obediente e adequada.
Existe um consenso social de que criança saudável é a criança bem adaptada a seu meio: obediente na escola e em casa, tira ótimas notas, chora pouco, está quase sempre alegre, empresta seus brinquedos, cuida do irmãozinho pequeno.
Nós, seres humanos, chegamos ao mundo sem saber quem somos, sem saber sequer que nascemos. Dependemos de outro para desenvolver nosso senso de “eu”, precisamos ser protegidos dos perigos inomináveis e sermos nutridos e acalentados, e de alguma maneira levamos esta condição de faltantes para o resto da vida, a isto Freud chamou de desamparo estruturante.
Importância de manter a autenticidade da criança
A verdade é que nem sempre a criança mais quieta ou obediente é a que se sente mais segura frente ao seu desamparo, e pode ser que efetivamente se sinta em perigo de rejeição quando precisa demonstrar seus medos, mostrar suas dificuldades, então simplesmente para, e entende que suas necessidades não têm lugar. Para preservar suas ligações de apego e afeto, precisa desistir, ou pelo menos abrir mão parcialmente, de sua autenticidade.
Se ser saudável é manter em grande parte nossa autenticidade e criatividade para inventar modos de viver, sentir e se relacionar – como nos ensina Winnicott em toda sua obra – temos aí um impasse frente ao que costumamos entender como saudável: a obediência e adequação frente ao que os adultos esperam da criança.
É certo que uma criança saudável pode ser muito colaborativa, mas não será pelos mesmos motivos da criança obediente e adequada. A colaborativa provavelmente se sente motivada a colaborar, a aprender com quem admira e se sente segura com os adultos que a cercam. A criança adequada que precisou desistir de parte de sua motivação e autenticidade para ser aceita pelos adultos e instituições – ou pelo menos não ser tão rejeitada – provavelmente obedece por medo.
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O medo pode moldar quem a criança vai se tornar
O medo faz nascer na criança uma máscara que pode a acompanhar até a idade adulta, quando percebe que sua vida está sendo vivida no automático, presa ao que os outros esperavam dela, e está vivendo aquilo que ela realmente quis e desejou. Muitas vezes, sequer sabe quais são suas aspirações e desejos.
A boa notícia é que todos temos o potencial para buscar nossa autenticidade, ou melhor dizendo, amadurecer. A criança que nunca pôde expressar suas emoções mais difíceis e ser aceita em toda sua espontaneidade crua, nunca deixa de existir.
Basta que encontremos um ambiente que nos aceite, nos ouça e nos acolha, sem invadir nosso querer, basta que haja relações seguras e que possamos confiar novamente que temos valor e que não somos erros ambulantes, somos pessoas, humanamente falhas e sempre tentantes. A segurança psíquica faz a criança tirar a máscara e se transformar num adulto que pode brincar com a vida e colaborar com seus pares adultos a partir de um lugar de menos medo e mais vínculo.
Afinal, a conexão com outras pessoas é a única coisa que pode dar contorno ao desamparo que nunca deixa de existir em nós. E aprender a construir vínculos, apesar de difícil, é a coisa mais saudável que podemos experienciar.
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