Dez anos
Uma década pode representar muita coisa, até mesmo o renascimento da gente mesmo, de novas ideias, novos olhares
Uma década pode representar muita coisa, até mesmo o renascimento da gente mesmo, de novas ideias, novos olhares
Quanto dura um suspiro? Em quanto tempo a gota que cai da torneira chega à pia? De quantos anos precisamos para ter uma vida plena? O beija-flor sabe voar de ré? Qual a duração da eternidade? Parar significa interromper? Perguntas…
Tudo parecia perfeito. O sábado amanheceu com o céu azul e a perspectiva do final de semana era excitante. Eu e a Lu não acordamos cedo naquele dia, pois havíamos dormido tarde. Na noite anterior tínhamos ido ao teatro e depois jantamos fora. Saímos para passear com nossas cachorras e falamos sobre o que fazer naquele final de semana. A vida era boa.
Não sei em quanto tempo uma gota chega à pia, mas sei que tudo pode mudar de repente, em um instante, na duração de um suspiro. Não sei se um beija-flor sabe mesmo voar de ré, mas, naquele sábado, 4 de agosto de 2007, aprendi que a vida pode mudar de curso em um instante.
Eu já havia tido tontura antes. Como sofro de uma leve labirintite, estou familiarizado com alguma sensação de desequilíbrio, em geral após viagens de avião. Além disso, já vivenciei o mundo girar e chacoalhar em um terremoto no México há alguns anos. Sim, eu sei o que é uma tontura. Ou, melhor, sabia. Porque aquela tontura foi diferente. Se a labirintite era um pagodinho, naquele sábado eu me vi no meio da bateria de uma escola de samba.
Escolhido pelo destino
Como surgiu? Do nada. No tempo de um sussurro. A dor não tardou, e foi a mais forte até então. Era insuportável. E depois veio o vômito, forte, em jato. Neurológico, eu sabia. O diagnóstico da tomografia confirmou: derrame cerebral. Causa? Inespecífica. Só três dias depois, longos dias passados em uma UTI, a arteriografia elucidou: aneurisma cerebral.
O que se seguiu foi a ação rápida e certeira da ciência, com a técnica recém-desenvolvida da embolização, um cateterismo que elimina o aneurisma sem necessidade de cirurgia, além do coquetel de medicamentos que diminuía a pressão, estimulava a fibrose da bolha assassina, prevenia convulsões, estimulava o intestino, além de diminuir a ansiedade do paciente.
Mas o que seria da medicina sem o humanismo? Sem o olhar seguro dos médicos, sem a atenção dos técnicos e enfermeiras, e também sem o apoio dos amigos e a presença da família? Ainda conservo a coruja de pelúcia que ganhei das filhas. Lembro que a Lu sempre entrava sorrindo para me ver, para depois descobrir que lá era o único lugar onde ela sorria. Fora, estava destruída pela possibilidade de me perder.
Mas não escrevo aqui sobre o aneurisma, sobre a iminência da morte, sobre a fortuna da recuperação. Escrevo porque isso aconteceu há exatos dez anos (2007-2017). Estou entre os escolhidos duplamente pelo destino. Entre aqueles que nasceram com esse defeito congênito, um grupo pequeno, na população geral. E, mais importante, estou em um grupo ainda menor dos que sobrevivem sem sequelas ao sangramento de um aneurisma no cérebro.
O valor de um período
Dez anos. Quanto vale dez anos? Quanto se pode fazer em dez anos? De quantos instantes é feito esse tempo? Não tenho essas respostas, pois elas não existem. Mas de uma coisa eu sei: pode-se viver uma vida em dez anos. Recentemente encontrei o filme Uma Nova Chance, que conta a história de um homem que sofre um aneurisma, entra em coma e se recupera. Ele, então, se prepara para retomar a rotina, mas algo mudou dentro dele. A nova chance veio acompanhada de uma nova postura de vida.
Me identifiquei com ele, ainda que não tenha mudado tanto assim meu interior, especialmente na relação com o que fazia. Ele era um executivo de um banco de investimentos. Lidava friamente com o trabalho. Eu não era um executivo predador. Era um professor e continuo sendo. Mas é claro que algo mudou, como a percepção sobre o tempo, especialmente em suas pequenas frações, muitas vezes não representadas por minutos ou segundos, muito menos por horas ou dias. Parece que fiquei com mais pressa de viver.
O que fiz eu nestes dez anos? Bem, posso dizer que os aproveitei bem, de verdade. Foram incontáveis as aulas, palestras, conversas, novos amigos. Produzi cinco livros. Viajei dezenas de vezes. Comecei a esquiar, percorri os Andes de moto. Conheci a África, o interior do Peru, a Nicarágua. Tive fraturas, fiz cirurgias. Tive preocupações e risadas. Almocei e jantei em lugares novos, deliciosos. Aprendi a cozinhar e a fazer drinques exóticos. Acordei em lugares remotos, mudei meu estilo de vestir, mudei de casa, mudei de ideias. Passei a gostar mais de rock, aprendi a rir mais, a ser mais leve, mais solto. Reencontrei meus colegas da faculdade e, juntos, viramos adolescentes.
Entender quanto dura um suspiro
Percebi que estava cansado de ser tão certinho. Mudei para o apartamento dos meus sonhos e o arrumei como sempre quis, ao lado da minha companheira da vida, que ria para mim no hospital. Meus filhos amadureceram. Ainda são crianças mimadas às vezes, mas procuraram seus rumos, casaram, tiveram filhos. Hoje eu tenho quatro netas e um neto. E, como se tudo isso fosse pouco, fui pai de novo. Em 2015 nasceu o Erik, que, com seu sorriso fácil redefiniu o sentido da vida, e me deu uma novíssima conexão com o futuro. Se você anda sem razões para criar um futuro, tenha um filho. Ele muda tudo, mas o que mais muda é nossa conexão com o devir.
Dez anos não é tanto assim. Lembro com exatidão fatos acontecidos até antes disso. Dez anos foi ontem. Quinze foi anteontem. Por outro lado, em dez anos podemos fazer tanto. Abrir e fechar empresas. Casar e descasar. Cair
e levantar. E tropeçar mais uma vez. Dez anos não é muito, mas pode ser uma vida, dependendo da disposição para não desperdiçar cada instante.
Primeiramente, tenho que agradecer por estes últimos dez anos a muitas pessoas. Se não fosse pela medicina eu não cá estaria. Se não fosse pelos amigos, pela família, por minha mulher, talvez cá estivesse, sem estar de verdade. A todos estes anos eu agradeço, e a todas as pessoas, meus leitores incluídos, convido para meu aniversário de dez anos de nova vida. A todos no dia 4 levantarei um brinde. Saúde! Alegria! Que os próximos dez sejam igualmente pródigos. Agora eu sei quanto dura um suspiro, porque aprendi a não desperdiçar nem esse pequeno intervalo de tempo.
Eugênio Mussak escreve desde a primeira edição de revista, só se ausentou em setembro de 2007.
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