A beleza das imperfeições
Olhar para o que somos no lugar do que nos falta é um aprendizado. Pode demorar anos ou mesmo uma vida inteira
Uma sala no fundo da loja de aviamentos do bairro, sem iluminação natural. Cadeiras de madeira formando um semicírculo. Era nesse lugar escuro que passava minhas tardes de sexta-feira. Tinha 18 anos e sem qualquer janela aberta em mim. Ao meu redor, mulheres entre 65 e 80 anos, inclusive a professora.
Todas fazendo seus tricôs com as linhas compradas ali. As aulas, uma vez por semana, eram gratuitas desde que se adquirisse o material por lá. Decidi fazer um cardigã, creme, de lã grossa. Escolha ao acaso. Projeto audacioso para uma aprendiz. Passava a maior parte do tempo quieta. Apenas ouvia as conversas sobre filhos, netos, consultas médicas, artrite.
Gostava de estar entre elas. Acolhimento. O final da adolescência foi período conturbado e sem pouso. Conforme o casaco ganhava corpo, mostrei para a mãe, que tricota desde sempre e com perfeição – como tudo que fazia. “Está cheio de buracos. Você precisa consertar ou ficará feio depois.” A crítica era território conhecido de mamãe.
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Relações familiares
Assertiva no olhar duro e inquisitório de quem procura defeitos. Em mim, sempre doeu feito lâmina cortante. Passei a infância ouvindo frases de como deveria ser. Ser magra, bem penteada, roupas passadas, boa aluna e de comportamento irrepreensível, boa filha, médica. Não era magra, preferia meus cabelos ao vento, não me importava com as dobras na camiseta.
Era boa aluna, comportada. Mas não seguiria pela medicina. E isso pesou, por anos, na nossa relação. Preferia o ninho da sala escura das aulas de tricô ao olhar da minha mãe à procura dos buracos no casaco. Ela enxergava todos eles. Em mim. Com quase 60, um AVC, problema que levou o pai dela aos 40, a atravessou e lhe escancarou a vida.
Foi quando veio o primeiro “eu te amo, filha”, ao final de uma ligação. Congelei sem saber como retribuir. Ela também passou a abraçar, sorrir. Dia desses, começamos a trocar figuras de bom-dia e boa-noite pelo Whatsapp. Ela termina a mensagem do mesmo jeito: amo você. Retribuo da mesma forma.
Mais recentemente, enviei a ela um desenho meu. Apavorada. Quantos buracos ela encontraria no meu novo casaco de tricô? Como exaltaria tudo o que eu não era? “Está fantástico. Posso enviar para as amigas?”. Nó no estômago, afago no coração. “Pode.” Estamis, eu e minha mãe, nos reconhecendo. Aprendendo a nos amar e enxergar. Escancarando as janelas. Pelo que somos.
*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.
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