Desculpe, mas não posso pedir desculpas
Pedimos desculpas para evitar confrontos e para escaparmos de situações embaraçosas. O mal é que acabamos por pecar pelo excesso...
Pedimos desculpas para evitar confrontos e para escaparmos de situações embaraçosas. O mal é que acabamos por pecar pelo excesso…
Uma das coisas que mais gosto nas viagens — para além das óbvias arte, arquitetura e gastronomia — é observar a cultura e o estilo de vida. Na minha primeira temporada na Inglaterra, até pela necessidade de uma adaptação rápida, estive muito atenta aos costumes e fiquei impressionada com o excesso de pedido de desculpas dos ingleses.
Os súditos da rainha pedem mais desculpas do que respiram, a todo momento ouve-se “sorry”, “I´m sorry”, “I´m so sorry”. Quando um ônibus transita pela cidade, mas não está apto a apanhar passageiros, leva a indicação “Fora de Serviço”; no Reino Unido, lê-se “I´m sorry, I´m not in service).
Quando estende-se o olhar para outros hábitos, chega-se ao que todos já sabem, a sociedade inglesa é extremamente polida e formal. E o pedido de desculpas faz parte das regras de conduta, uma espécie de lubrificante da complexa engrenagem das relações sociais.
De acordo com um estudo, eles pedem desculpas em média 8 vezes por dia… e alguns chegam a 20 pedidos diários. Em Portugal, onde vivo — e para onde se dirige a mais recente onda de imigração brasileira — não é diferente. O pedido de desculpas não chega ao fanatismo inglês, mas, é igualmente frequente.
E está presente inclusive nos conflitos. É muito comum um pedido de desculpas, antes de uma frase pouco simpática, uma espécie de amortecer de agressões, algo como “eu peço desculpas, mas o senhor não tem razão nenhuma”.
E para os falantes da língua portuguesa — muito cuidado — há outros formalismos a considerar. Os recém-chegados notam logo o uso do pronome “tu” e tentam implementar de imediato. É o primeiro erro. Primeiro porque conjuga-se o pronome com o verbo, pouco familiar aos brasileiros. O que faz com que alguns verbos exijam uma consulta à gramática (os cariocas usam o “tu”, mas dizem “tu vai” ao invés do correto “tu vais”). “Desculpa” e “Desculpe” não é a mesma coisa, por exemplo.
E, por último e pior, os portugueses usam o “tu” apenas entre conhecidos e pessoas com alguma intimidade. Não se pode chegar a uma loja e tratar o funcionário por “tu”.
Certa vez, presenciei, uma colisão entre uma senhora portuguesa e um rapaz brasileiro. E, ele, ajudando-a a recolher as sacolas, repetia “Desculpa, desculpa”.
E ela, muito ofendida, vira-se e diz “o rapaz não me conhece de lado nenhum, quase me deita ao chão e ainda me trata por “tu”? E lá partiu a senhora indignada.
Vivo aqui há algum tempo e sempre que posso procuro ajudar os recém-chegados. Diante do olhar atônito do rapaz, tentei esclarecer. Expliquei os diferentes tipos de tratamento, a conjugação do verbo desculpar… mas penso que ele não compreendeu.
Formalismos culturais à parte, há dezenas de razões para lançar mão de um pedido de desculpas. Afinal, existe uma grande diferença entre espirrar em público e faltar a um compromisso. Reclamado pela arte da boa convivência, o ato tem mil e uma utilidade: evita conflitos, apazigua os ânimos, desarma agressores, diminui e, até mesmo, elimina uma ofensa percebida. Além do seus indicadores subliminares: mostra que somos empáticos, solidários, humildes, generosos, respeitosos.
Na quantidade e na qualidade da prática dos pedidos de perdão há uma forte componente cultural. No Brasil, pratica-se a etiqueta do clássico e simples pedido de desculpas. Mas, devido ao nosso rótulo de “povo cordial” imperam as desculpas indiretas, as clássicas “desculpas esfarrapadas”.
Ao invés de dizer “não. Obrigada”, você inventa um motivo: “desculpa, tenho um jantar nesse dia”. Ao invés de dizer “desculpe, não pude ir”, diz: “Sabe o que aconteceu? Eu tive um imprevisto etc.”. É uma forma de evitar conflitos e, ao mesmo tempo, manter a nossa imagem positiva.
E aprendemos isso desde cedo. Qual a criança que nunca foi obrigada a pedir desculpas a um amigo ofendido? Muitas vezes, não houve culpa — ou as motivações da criança foram justas — não importa. É para ficar tudo bem. Um sopro na ferida. Uma espécie de maquiagem social. São atos automáticos que aprendemos na infância e não passam pelo crivo da razão. Pedimos desculpas para evitar confrontos e para escaparmos de situações embaraçosas. E carregamos isso pela vida afora.
O mal é que acabamos por pecar pelo excesso. Pedimos desculpas por não aceitar um convite para jantar com pessoas com as quais não partilhamos afinidades ou por não ter comprado um sapato depois de “incomodar”o vendedor. Pedimos desculpas quando erramos, quando desconhecemos que erramos, quando — sem saber — nossos atos geraram consequências negativas, mesmo não intencionais. E assim passamos de uma desculpa a outra.
Ser polido, pedir desculpas é realmente muito apreciado, mas há limites. A prática em excesso pode se converter em submissão e subserviência, uma agressão a nossa autoestima.
As desculpas indiretas podem acentuar vícios de personalidade, como o culto a imagem social positiva e a mania de agradar a todo custo. Deixamos de levar em conta os nossos critérios, perdemos o respeito pelos nossos valores e direitos e renunciamos relacionamentos igualitários.
É fácil identificar o equilíbrio no convívio. Há pessoas que não conseguem dizer “não” a um colega de trabalho abusivo, enquanto outros recusam um convite com um simples não e vão para casa felizes.
Nesse quadro, a saída possível é não ter medo de expressar necessidades, opiniões e sentimentos. E aqui não é questão de mudar de personalidade, é de prática. Com um pouco de treino, perde-se o medo e torna-se fácil ser honesto consigo próprio e com os outros sem culpa e sem taquicardia.
Fique em posição ereta, seja respeitoso, mas não peça desculpas por não ter determinado conhecimento, por não estar à disposição de um voluntário de uma ONG, por cobrar a devolução de um dinheiro emprestado, por não responder mensagens, por não telefonar. E isso vale também para as desculpas indiretas.
Quando sair do trabalho no horário determinado no contrato, não se justifique, não explique que as crianças estão sozinhas; não se justifique por não ter respondido o Whatsapp, diga simplesmente que estava ocupado.
Não ir a uma festa, ter pressa, não assumir um encargo é um direito seu. Gerencie o seu tempo e os seus esforços como achar melhor, você não precisa estar constantemente procurando o perdão dos outros.
Mas e quando você está sempre pedido desculpas, mas são sinceras?! Após um período de reflexão você descobre que errou e lá vai, mais uma vez, pedir desculpas. Pedir perdão é o correto, mas não faça disso uma rotina. Percorra o caminho do autoconhecimento, fixe os olhos na linha do horizonte e mantenha as mãos firmes no leme. Reveja seus valores e vigie seus atos porque a vida de quem está sempre se arrependendo é uma desgraça… Peço desculpas pela dureza das palavras.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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