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As histórias das lágrimas que unem mulheres viajantes
Tomas Jasovsky | Unsplash
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Neste artigo:

Amably Monari estaciona sua moto numa cidade de serra, longe de casa. Senta na calçada e chora. Ela é uma mulher forte e inteligente. É psicóloga, especialista em Neuropsicologia Clínica, e vendeu quase tudo o que tinha para sair viajando pela América Latina com a Freeda, uma Harley-Davidson. Ela queria, pela estrada afora, vivenciar o “não-controle” das coisas. De fato, conforme avançava ao longo de meses, foi guerreando com os desafios, largando o controle aos poucos, deixando-se levar. Finalmente, quando o soltou por completo, seu ego se percebeu derrotado, sem sucesso nem direção — e sem um só real no bolso. Foi quando ela chorou.

Será que Amably sabe que nos contos de fada é após o pranto que aparecem as forças além do “eu” — muitas vezes representadas por objetos mágicos, pessoas ou coincidências que surgem para auxiliar? É o que eu me pergunto enquanto assisto ao relato daquela que imagino como a mais autoconfiante — afinal, ela pilota uma Harley! — das viajeiras que abriram suas vidas no palco do Encontro de Mulheres Viajantes em março de 2022 em São Paulo, no Brasil.

A palestra de Amably, registrada pela fotógrafa Luciana Zenti

A motociclista nômade continua (acho que ainda sem perceber a grandiosidade do que ocorreu) e revela que, após se esvair em lágrimas, ela encontra um pouco de força — pelo menos o suficiente para fazer um certo movimento necessário (dar um telefonema), e atrai a ajuda de uma boa amiga.

Em seguida, ela vira a situação do avesso e recria a viagem transformando-a num projeto de pesquisa sobre saúde mental e emocional, entrevistando pessoas que conhece pelos caminhos da América Latina e fazendo intervenções humanitárias. Agora, ela é a Psico on The Road e segue mais segura — e de cabelo colorido — acelerando a antes Freeda, hoje Mabel, pelas estradas do continente.

Todo mundo chora

Lágrimas de chuva molham o vidro da janela do ônibus de viagem pela BR-116 enquanto voltamos para casa depois do encontro. Não consigo parar de pensar nas histórias que ouvi lá. Minha companheira na viagem — Luciana Zenti, fotógrafa com olhar aguçado para registrar gente em travessia — me desafia a descobrir qual frase conectou todas elas.

— “Daí eu chorei!”. Foi o que quase todas disseram! – diz Lu, com ares de astúcia e os pés para cima, apoiados na divisória que dá para a cabine do motorista.

Ela está certa. Ao longo da minha vida como viajante, também já chorei bastante. É o que pode acontecer com quem se recusa a fazer viagens superficiais. Claro, a cada vivência estranha ao nosso mundinho, nossas comportas internas se abalam. E a gente chora, sim.

Lágrimas no acostamento

Às vezes, o choro vem como um alerta. Como a luz vermelha acendendo no painel do motorhome de Luana Solomon. Ela segura a direção e acelera, mas o veículo não a obedece, chega a 10 km/h e para. Ela olha para trás, mas seus companheiros de viagem não podem ajudar — Chai e Gregor são cachorros! Então, ela encosta o carro e começa a chorar.

Foto: Luana Solomon / Arquivo Pessoal

Luana Solomon viveu por vários anos a vida de uma segura carreira em finanças, mas não estava feliz. Vendeu pertences, comprou um carro-casa e saiu para viajar com seus peludos. Aprendeu que seguir sem roteiro definido não significa ser imprudente. Mas, isso foi depois de chorar, tá? E não uma única vez. Ela também chorou quando foi parar no meio do nada em plena noite depois de seguir pelo caminho errado. Assustada, foi acolhida por novos amigos e, a partir dali, desacelerou o tempo suficiente para estudar seu funcionamento emocional e também o do motorhome.

As lágrimas deram vazão a uma nova Luana viajante. “São suas decisões, e não suas condições, que determinam o que vai acontecer”, disse ela que, depois do buá, acelerou renovada, sabendo mais dessas coisas de mecânica, e com Chai e Gregor a bordo do motorhome Fênix.

Para de chorar!

Às vezes, o choro vem para clarear as ideias. A percepção que Josefa Feitosa tinha de si mesma mudou radicalmente após um estrangeiro — um português convocado às pressas para acudi-la quando estourou em lágrimas numa estação de trem suíça — gritar com ela. Josefa havia entrado em desespero repentino por se dar conta da falta que fazia falar uma língua além da própria. “Para de chorar! Uma mulher que faz o que você está fazendo não precisa se amedrontar!”.

Josefa passou mais de 30 anos da sua vida como assistente social no sistema carcerário cearense. Após uma rebelião no presídio onde trabalhava, pediu a aposentadoria e foi viajar. Começou pelo Brasil, depois Portugal, Espanha… Até chegar onde não conhecia o idioma. Quando rompeu aos prantos na Suíça, lembrou que seus filhos a haviam alertado: era mulher preta, com mais de 60 anos, se aventurando pelo total desconhecido, sem falar nenhuma outra língua.

A palestra de Josefa, registrada pela fotógrafa Luciana Zenti

O pito do português a botou no prumo. Ao invés de desistir, pensou na força que o portuga lhe passou e foi para a Irlanda estudar inglês, o idioma universal. Por lá, conseguiu alguns trabalhos e retomou seu poder pessoal.

Josefa voltou para o Brasil, assumiu seu estilo de vida viajante e minimalista, vendeu tudo, alugou a casa e foi a África.

Depois, Ásia.

Depois, América Latina.

E agora, Josefa mora onde lhe der na telha. Segue a vida viajando, trabalhando onde puder, provavelmente chorando de vez em quando, mas dessa vez no controle de sua bagagem emocional. “Eu não tenho mesmo nenhum medo de demonstrar emoções”, confessa.

O choro de Jung

Nem sempre lágrimas irrompem só trazendo tristeza. As águas que sobem no pranto podem ser como as cheias de alguns rios. Inundam tudo, mas na verdade estão preparando o solo para as futuras semeaduras — inclusive foi assim, aproveitando as cheias dos rios, que os egípcios do mundo antigo criaram seu sistema de irrigação para a agricultura.

Ver o choro como uma inundação que fertiliza é coisa de Carl Jung, e quem me falou sobre isso foi uma psicóloga amiga, Suellen Rosa, que auxilia, justamente, pessoas em travessia.

Desconfio que as gotas de suor e as lágrimas da viajante Jessica Paula fertilizaram seu caminho naquele dia em que ela aprendeu, aos 12 anos, a usar os braços para segurar as muletas com as quais percorreria o mundo. Sem a força das pernas e do tronco (perdida aos 6 anos por causa de uma infecção na garganta que migrou para a medula), ela nos conta sobre a primeira volta ao redor da casa com os bastões. Arranca respeito e água dos olhos da plateia impressionada, e revela sua saga como viajante e escritora no leste africano, uma das regiões mais conflituosas e de difícil acesso no mundo. Sempre sobre as muletas e na potência do braço e do espírito nômade.

A palestra de Jéssica, registrada pela fotógrafa Luciana Zenti

Não sei mais o que fazer

As lágrimas seguem vertendo tanto na plateia quanto no palco, enquanto mais mulheres viajantes expõem seus limites e o que aprenderam com eles. E vai ficando claro que o pranto é um ponto de corte.

O pranto é o “não sei mais o que fazer”, é o momento em que o “eu” perde o controle e toda a autoridade, e não há outra opção a não ser sair dessa.

A carioca Márcia Reis, conhecida como a Coroa Mochileira, estava nesse limite quando colocou o pé na estrada para fugir de um estado depressivo após se aposentar e ver as filhas saírem do “ninho” para viver suas próprias vidas. Chorou muito e quis chorar quando deu o primeiro passo — fazer uma viagem curta até Arraial do Cabo (RJ) usando um aplicativo de carona solidária. O que deveria ser três dias virou cinco. Deu tudo certo.

De lágrimas enxutas, Márcia comprou uma mochila, jogou a bagagem nas costas e assumiu uma vida semi-nômade, turistando pelo mundo.

A palestra de Márcia, registrada pela fotógrafa Luciana Zenti

O choro também descarrega e liberta ideias boas. Isabella Santos, que chorou quando quis mergulhar as mãos no rio Tejo, em Portugal, que o diga. Ao se conectar com a história de seus antepassados, foi tomada de uma emoção sem precedentes e, ali mesmo, decidiu voltar de viagem e criar no Brasil o Sampa Negra, um passeio turístico que descortina a trajetória de povos excluídos da história de sua querida São Paulo.

A palestra de Isabella, registrada pela fotógrafa Luciana Zenti

Sabático: o nome técnico do surto

Além do choro assumido, há mais uma coisa conectando essas viajantes: o sentimento de gratidão pelo que provocou as lágrimas — porque é a partir daí que elas deram início a trajetórias extraordinárias.

Gilsimara Caresia, a mulher no comando dessa reunião de poderosas choronas, alternou riso e lágrimas, força e vulnerabilidade contando como montou um negócio para incentivar mulheres a viajarem pelo mundo e acabou promovendo um movimento de empoderamento feminino.

O percurso de Gilsimara começou a partir de um desgaste emocional (que teve choro, claro) seguido da decisão de assumir sua vulnerabilidade e se dedicar a um ano sabático — que ela chama de “nome técnico para o surto” — entrando num ônibus direto do terminal rodoviário da Barra Funda, em São Paulo, para o Peru.

A palestra de Gilsimara, registrada pela fotógrafa Luciana Zenti.

A pesquisadora e escritora norte-americana Brené Brown disse uma vez (e se tornou mundialmente famosa por isso) que o receio em expor nossas vulnerabilidades impede que um montão de boas ideias sequer sejam testadas, jamais ganhando o mundo. Uma pena. Ou seja, bem ali onde topamos com nossa vergonha e nossos medos, também encontramos criatividade, alegria, integração com os outros e amor.

Logo, escancarar nossos pontos vulneráveis — e chorar! — não seria exatamente uma tragédia.

Nosso ônibus segue pela estrada. Ainda falta chão para chegar em casa. A Lu só provocou a reflexão e virou de lado para dormir. Fiquei sozinha, pensando comigo mesma que o pranto parece fraqueza, mas muitas vezes vem trazendo à tona a mais potente força. Tá liberado o choro agora?

Leia todos os textos da coluna de Juliana Reis em Vida Simples

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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