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Amar e trabalhar em tempos estranhos
Miguel Ángel Hernández / Unsplash
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Neste artigo:

Nos últimos dois anos, todos os seres viventes encararam a experiência de viver num lugar estranho. A pandemia sacudiu o planeta. Mudou as peças de lugar, colocou tudo em causa e deixamos de reconhecer o nosso chão. Tivemos que adotar novos hábitos e aceitar confinamentos, regras, restrições, ameaças e inseguranças. Uma nova cultura, estranha à nossa e imposta pelos outros, instalou-se.

Sem sair de casa, experimentamos a mesma estranheza daqueles que se mudam para um país estrangeiro. Uma condição na qual o entorno nos invade e nos modifica. E, mesmo em choque, não deu para suspender a vida, ela teve que seguir. Relações foram terminadas, outras foram iniciadas. Hábitos foram abandonados, outros tomaram o seu lugar. Em tempos assim, todos buscam um abrigo seguro. Rotinas, hábitos, consumos — e até pessoas — foram agarrados como boias salva-vidas.

Uma vida que não é a minha

Quando a estranheza inicial foi vencida e o clima de “fim do mundo” ficou para trás — afinal, sempre nos adaptamos — todos tiveram a vida modificada. E poucas foram para melhor. Afinal, como é possível fazer boas escolhas no caos? Por conta disso, hoje, há um verdadeiro exército de pessoas vivendo o que Heidegger considerava o grande perigo da modernidade: a vida inautêntica.

Nessa condição, o sintoma é a impressão de que existe alguma coisa errada, fora do lugar, desencaixada. Mas você não sabe muito bem o que é. Isso porque, na heideggeriana vida inautêntica, há uma alienação de si mesmo. Você está ali, mas não é você. Só há mal-estar, embotamento, sensação de arrependimento, de culpa. Qual é a nossa primeira providência? Aliviar a carga. E começamos pelo mais fácil. Assim, os sites de produtos de segunda mão estão abarrotados de bicicletas ergométricas, passadeiras e máquinas de fazer pão. Entidades que acolhem animais abandonados estão em lotação máxima.

Quem é a pessoa do seu lado?

Depois do mais fácil, vem a parte complicada. O que fazer com os relacionamentos que “não era bem o que você queria”? Você olha para a pessoa ao seu lado e… Vislumbra nela um desconhecido. Você sempre teve horror ao cigarro e, agora, esse é o primeiro odor que você sente quando entra em casa. No passado, cercou-se de pessoas vibrantes e alegres e olha para o lado e vê uma pessoa letárgica, quase com preguiça.

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Os tempos de rostos femininos e delicados foram substituídos por um rosto sisudo, quase masculino. Desde sempre, você estabeleceu que jamais teria uma relação amorosa com alguém dessa ou daquela nacionalidade e agora se dá conta que essa mesma nacionalidade faz parte dos seus dias. E não adianta lançar mão do politicamente correto. Preconceito, quem não os tem?

Todos se agarraram a boias salva-vidas? Não. Houve pessoas que soltaram. Não somos todos iguais. Há um tipo de pessoa que quando experimenta a vida inautêntica, pelo avesso, enxerga com nitidez a vida autêntica.

E por que é assim?

Questões da filosofia existencialista à parte, trago para essa questão, Sigmund Freud. Considero o pai da psicanálise como um pensador de primeira grandeza, do mesmo nível de Heidegger ou Kierkegaard. E aqui trago um conceito freudiano. Para ele, o pavimento primeiro da nossa essência — ou o que caracteriza um adulto “normal” — é a capacidade de amar e trabalhar.

Entendendo que amar não se trata necessariamente de amor romântico ou sexual. Amar significa ter investimento afetivo no outro, interesse, compaixão, solidariedade. Trabalhar é ser capaz de encontrar na sociedade uma atividade que lhe permita levar a sua existência, ter autonomia. Enfim, participar no mundo. Como eles são os nossos alicerces, os estados de emergência atingem-nos de forma contundente.

Como proteger essas nossas capacidades fundamentais? Primeiro, ter consciência da importância delas. É preciso um olhar atento para o que é passageiro e para o que é permanente. Se você estiver se sentindo mal em sua própria pele, refaça o caminho. Geralmente, o que abraçamos nos momentos críticos, deixa de fazer sentido quando voltamos a normalidade. E não é apenas isso, as soluções que serviram para apaziguar certos vazios e dramas de ontem, não servem para o hoje. Não feche os olhos a isso.

Estrangeiro no espaço e na mente

Quem passou pela experiência de viver em outro país lidou melhor com a pandemia. Numa cultura estranha a nossa, não sabemos bem quem é quem e, a certa altura, somos absorvidos pelo ambiente e já não sabemos quem nós próprios somos. O lugar estranho é físico — como um país — mas também é existencial. O nosso corpo está no lugar de sempre, mas a nossa mente vive em terras estrangeiras. Nas duas vertentes, o desafio é o mesmo.

Eu conheço os dois estados. Recém-chegada a Lisboa, dividia-me em duas frentes. A primeira, o desafio de absorver e me integrar numa forma de pensar e numa cultura muito diferente da minha. Ao mesmo tempo, tentava manter à tona — e em boas condições — a minha essência. Mesmo no caos semântico, não descuidei da minha singularidade.

Minha essência

Nos primeiros tempos, não tive problemas com a “capacidade de trabalhar”. A escrita permite o trabalho a distância e eu mantive o trabalho que tinha no Brasil. Mas, a minha “capacidade de amar” ficou muito comprometida. Não tinha um único amigo na cidade. Num encontro com a querida jornalista Patrícia Jota fui alertada sobre a melhor forma de conduzir esse departamento.

Patrícia vivia em Cascais e tinha a mesma queixa. Não tínhamos amigos e muito menos amigos brasileiros. Conhecíamos alguns portugueses, mas as amizades precisam ultrapassar a cultura e levam tempo. Sem contar que a relação com alguém da nossa própria cultura tem outro conforto.

Constatamos, com perplexidade, que era um cenário incomum. Afinal, havia tantos brasileiros vivendo no país. Patrícia, sempre muito assertiva, elucidou essa incompreensão: a nacionalidade não é o único critério para se construir uma relação, nem de amizade, nem qualquer outra. “Não poderia ser amiga de uma pessoa em Portugal que eu não seria amiga no Brasil”, disse ela. Questão lucidamente resolvida: seja em Portugal ou no Brasil, a nossa essência é a mesma.

Tomei boa nota dessa recomendação valiosa. Ela é uma espécie de guia para a vida autêntica. Não devemos comprimir a nossa essência para que ela caiba na caixa do momento. Não podemos sacrificar a nossa singularidade em nome de comodismos e covardias. Encaremos com estranha perplexidade o cenário que está à nossa frente, mas não percamos de vista a nossa essência. É dela e só a partir dela que emana a força que serve para enfrentar tudo que ainda está por vir. Seja ele o que for.

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*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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