Em casa

Demanda algum tempo para nos sentirmos realmente em casa, dentro e fora da gente mesma.

Gosto de namorar minha casa todo dia. Amo a luz que entra pelas janelas, trazendo o mundo para perto sem tirar nossa privacidade. Rio com as senhorinhas conversando bem cedo, debaixo da minha janela. Aqui o silêncio e os sons vivem em harmonia. Moro num prédio de 1958, três andares, vizinhos que são como família. Francisco tem amigos no condomínio e anda de bicicleta na pracinha em frente de casa. Fica ali o nosso espaço gourmet: toda quinta tem feirinha e festa até as dez da noite.

A poucos passos tem supermercado, hortifrúti, padaria, farmácia, banco, lavanderia. Da minha janela, vejo a lanchonete que serve um pão de queijo dos deuses. Francisco vai a pé para a escola e usamos pouco o carro. Cumprimentamos as pessoas como no interior. São menos de 100 metros quadrados abrigando o luxo que mora nos detalhes. Decorada com calma, minha casa espelha a paciência que aprendi a cultivar. Aqui me refugio das provocações de um mundo que está longe de ser como eu desejava.

Convite

Nem sempre foi assim. Eu morava no bairro, mas não estava feliz com o som de carros da avenida. Num passeio de bicicleta, Francisco avistou a placa indicando disponibilidade, justo no lugar que acenava como uma espécie de oásis afetivo. Foi a minha casa quem me convidou para morar nela. Ela é o reflexo da minha trajetória. Aqui cultivo o silêncio sem a rigidez que me tiraria a leveza. Olho para dentro sem me fechar para o mundo. Estou em casa na minha companhia. Desde que saí da casa do meu pai, há 21 anos, mudei de endereço oito vezes. Foi preciso tempo para me conhecer, como podemos levar anos para apurar o jeito de vestir. Aprendi a morar aqui e em mim. Estou em casa como nunca.

CRIS GUERRA é autora de Procurava o Amor em Jardins de Cactos. Escritora, acha que até as palavras servem para vestir. @eucrisguerra