O tempo e o vento
Os pequenos acidentes, as pessoas que encontramos pelo caminho e os acasos inexplicáveis fazem toda a grandiosidade das viagens e tornam os destinos inesquecíveis.
Os pequenos acidentes, as pessoas que encontramos pelo caminho e os acasos inexplicáveis fazem toda a grandiosidade das viagens e tornam os destinos inesquecíveis.
Na primeira viagem, a Entre Trópicos, quando velejamos de Miami até a Ilhabela, muitas quebras e pequenos acidentes nos impediram de seguir viagem por alguns dias, forçando-nos a ficar ou a buscar um lugar para reparar o barco. Sempre, sem exceção, imprevistos aconteceram. Dessa forma, conhecemos pessoas interessantes e encontramos lugares mágicos. A viagem tomou rumos que nunca imaginei. Conheci gente em muitos recantos onde jamais sonhei parar.
Uma das paradas forçadas que nunca mais vou me esquecer foi em Praia Nova, quando descíamos a costa do Ceará. Um pouco antes do porto de Camocin, o maior centro pesqueiro da região. Estávamos navegando contra o vento, com muita onda. Os barcos sofriam muito batendo os cascos e tendo suas estruturas maltratadas. Lembro-me de sair de manhã de uma praia e perguntar a mim mesmo: “o que vai quebrar hoje?”, pois todos os dias aconteciam imprevistos. Aquele pedaço de costa entre Belém e Natal é considerado o pior trecho da costa brasileira, principalmente velejando contra o vento como nós estávamos fazendo.
Instinto
No meio da tarde daquele dia, decidi parar o barco. Algo me dizia que as coisas não estavam bem. Normalmente sempre decidimos juntos onde parar. Porém, naquele dia não consultei o outro barco com meu companheiro de viagem, o Marcus Sulzbacher. Ele apenas me viu arribando o meu barco em direção as pequenas casinhas enterradas nas dunas. Descemos as ondas e “aterrizamos” na areia.
Em um minuto fomos rodeados por toda a aldeia de pescadores. Mal começamos a baixar as velas, eu percebo que a travessa de alumínio que une os dois cascos estava rachada. Isto é, mais alguns minutos navegando e o barco implodiria no meio do mar.
Reparos pelo caminho
Duncan, meu companheiro de barco, sugeriu que procurássemos algum pedaço de pau para colocar por dentro do perfil de alumínio como uma luva, até chegarmos a algum lugar com mais estrutura para tentar um reparo mais apropriado. Ironizando, eu respondi a ele, “mas, Duncan, aqui nem árvore tem, como vamos encontrar uma madeira?” Estávamos em uma vila enterrada nas dunas.
No mesmo instante, um senhor bem magro, de chapéu de palha, camisa de manga curta abotoada até em cima, vem e diz: “Desculpe moço, mas lá em casa eu tenho um pedaço de pau que poderá caber ai”. Perguntei se era possível ver a peça e em dois minutos ele voltou com a madeira na mão.
Todos ficaram perplexos com a forma e o tamanho da peça. Era quase perfeita, como se tivesse sido feita para entrar no perfil de alumínio. Só faltava um par de horas e uma boa plaina.
O inesperado
Mesmo sem ter dito nada, aquele simples senhor com um ar de entendido começou a estudar o perfil de alumínio e a trabalhar com as ferramentas que trouxe com ele. Não sabíamos, mas havíamos caído nas graças do pescador mais antigo da vila. Um homem que passou a vida em cima de uma jangada, se orgulhava de nunca ter saído de Praia Nova em 70 anos, de nunca ter visto televisão. E, se dependesse dele, queria morrer ali.
Sr. Francisco era também excelente carpinteiro. E enquanto aquele velho pescador trabalhava, desmontávamos a travessa traseira. Como o vento estava muito forte e voava muita areia nos nossos olhos, transferimos a oficina para a casa dele.
Generosidade
Ao chegar fomos muito bem recebidos pela sua esposa, que rapidamente nos ofereceu chá. A história se repetiu muitas vezes naquela viagem, e sempre que chegávamos a lugares simples éramos recebidos com muita generosidade. As pessoas que menos tinham a nos oferecer materialmente, sempre nos abriam as portas de suas casas e davam suas camas se preciso fosse para nos ver confortavelmente alojados.
Havia algo muito interessante naquele casal, que tinha filhos espalhados pelo mundo (somente o caçula morava com eles). Tinham um espírito nobre, postura elegante, e uma sabedoria própria das pessoas simples.
A travessa ficou pronta, perfeita, e mesmo depois de alguns anos ela continuou lá, no mesmo lugar. Acabamos dormindo na casa dos nossos novos amigos e, no outro dia, partimos para Jericoacoara com o coração alimentado, depois de uma noite ouvindo muitas histórias.
Despedida
O que fazer para retribuir tamanho carinho? Um homem como o Sr. Francisco trazia no coração um aprendizado que o mar ensina. Ser simples, generoso, prestativo, amoroso e sábio — sem alarde. Foi muito difícil a nossa despedida deles e das crianças daquele pequeno povoado, quase esquecido, que de tempos em tempos é soterrado pelas dunas que avançam com o vento.
Muitos destes acontecimentos nos levaram a atrasar as viagens. Entretanto, por alguns momentos tive a sensação de que as coisas aconteciam propositadamente para entrarmos no tempo correto da viagem, dentro de um cronograma perfeito. Por vezes acho que precisei andar algumas milhas a mais somente para cruzar o olhar com alguém.
Aprendizados no mar
Agora, sempre que estou no meio do oceano, fico atento para os desígnios da vida. Não quero buscar explicações, porque ao se explicar você limita, cria barreiras. Nem tampouco falo o nome de Deus, pois não gosto de humanizar o que para mim, pessoalmente, é algo muito maior do que possamos imaginar.
Tudo isso que aprendi na vida mora nos oceanos profundos dos sentimentos. De tempos em tempos vem à tona me dando um conforto imensurável, trazendo-me a certeza de que estou fazendo o que devo fazer. Não dá para nominar algo tão sublime, seria muita pretensão da minha parte.
Muitas vezes a vida tem o tempo dela e, por vezes, fiquei esperando uma resposta que veio somente alguns anos depois. A nossa tendência é querer controlar o tempo, habituados com o relógio, que pode ser um instrumento de aferição de tempo, mas ele não consegue estabelecer o fim de ciclo, nem o começo de outro.
De tempos em tempos me recordo do Sr. Francisco e me vem a nostalgia de um tempo que ficou guardado no meu coração. Tempo de sentir saudades!
BETO PANDIANI é velejador, palestrante e escritor. Velejou da Antártica à Groenlândia, cruzou dois oceanos (Pacífico e Atlântico), sempre em pequenos veleiros sem cabine. Tem sete livros publicados.
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