De que falamos quando falamos de sexo?
Tema árido na filosofia, tratado apenas como um incômodo resquício animal, o sexo é mais do que isso, é parte essencial da nossa humanidade.
Tema árido na filosofia, tratado apenas como um incômodo resquício animal, o sexo é mais do que isso. É parte fundamental da nossa humanidade.
Todos nós sabemos o que é o amor. Mas quando nos pedem para explicar, recuamos. “Que tipo de amor?”. Durante uma década, a antropóloga evolucionista, Anna Machin procurou uma definição do amor. E, finalmente, em 2022, irá lançar um livro divulgando todas as suas descobertas. Para os ansiosos, ela já despejou um balde de água fria.
Sua conclusão é: o amor é complicado. Por fim, após 10 anos de pesquisa, ela encontrou 10 respostas bem fundamentadas para a pergunta. Questão fechada? Não. Ela já veio a público dizer que se lhe dessem mais 10 anos, ela com certeza arrumaria mais 10 respostas “bem fundamentadas”.
O tema já foi tratado por aqui mais de uma vez. Já abordamos o amor romântico. Em seguida, também lançamos um olhar critico sobre o amor praticado por filósofos — a quem erroneamente julgamos mais lúcidos do que a maioria. Entretanto, o mistério semântico sobe de tom quando entramos no terreno do sexo.
Sexo, compaixão e adoração
Dentro da filosofia, é praticamente um não tema. Os poucos que se aventuraram nesse campo ficaram pela vertente da biologia, como Schopenhauer. Uma das poucas exceções, é mesmo Nietzsche. Para ele, deveríamos parar de ouvir a “voz da consciência” e voltar a ouvir o corpo. Nietzsche escreve em Aurora que “os sentimentos sexuais tem afinidades com a compaixão e a adoração”. Mas ficou por ai.
Dessa forma — tal como no amor — continuamos no mesmo registro do incognoscível. Por mais que falemos sobre sexo, ele permanece inacessível. Raramente conseguimos falar sobre a nossa personalidade sexual. Às vezes, nem sequer com a pessoa com quem dividimos a cama.
A verdade sobre si
Como resultado disso, ficamos prejudicados porque uma parte essencial nossa fica na sombra. E não é qualquer parte. De acordo com Michel Foucault, a sexualidade é a única porção em nós que não é possível falsear. É mesmo o nosso terreno da verdade. É fácil compreender o valor dessa faceta do sexo. Num mundo onde predomina o falso e o aparente, as regras sociais condicionam tudo o que fazemos — e até o que pensamos. Na sociedade, é difícil saber se as pessoas gostam de nós ou estão sendo simpáticas por formalidade ou conveniência.
Lugar da verdade sobre si, a sexualidade é orgânica e soberana. A atração física, o erotismo esmagam o ser racional que há em nós. Assim, o sexo também é um espaço de liberdade, onde revelamos o que e quem somos.
Intensidade encoberta
Contudo, essa é a única parte fácil na compreensão da sexualidade. As dificuldades maiores estão relacionadas com a forma grosseira e simplista a que foi reduzida pela modernidade. É certo que evoluímos. Há um longo caminho percorrido desde a crença de que a masturbação causava doenças — loucura, cegueira e até a morte — até a banalização da pornografia. Porém, esse avanço foi quase sempre na superfície ou na clandestinidade, passando por cima de toda a sua complexidade e riqueza.
Como resultado, o sexo foi reduzido a um ato banal. Hoje, é visto como um ato revigorante e saudável, quase como um esporte. E, mais do que isso, há uma crença generalizada de que a maioria dos problemas que envolvem o sexo — falta de libido, ausência de orgasmo, impotência, frigidez, ejaculação precoce — podem ser resolvidos com o domínio de certas técnicas, como o Kama Sutra e a pompoarismo, por exemplo. Em outras palavras, trata-se de melhorar a performance, aprender novas posições. Tal como uma modalidade esportiva.
Por quê você me atrai?
Mas afinal, por que aderimos massivamente a esse simplismo? Porque é mais fácil. Mas não só. De acordo com o filósofo Alain de Botton, é muito raro não passar pela nossa cabeça o quão estranhos somos sexualmente. Quase todos nós somos perseguidos por culpas, neuroses, desejos estranhos e fora de contexto, indiferenças e repulsas. Nenhum de nós lida com o sexo de uma forma natural. Em parte e, sob alguns aspectos, isso deve-se ao fato de estarmos completamente no escuro.
Por que esse me atrai, se não me convém? E por que essa não, que está disponível, é simpática e até gosta de mim? Se alguém de quem gostamos diz que nos quer apenas como um bom amigo, por que sofremos como se fosse uma condenação definitiva? Qual a razão para não aceitar como natural algo que o outro não comanda? Por que alguns atiram-se com fúria contra o amado, como se o “não sentir do outro” fosse algo que pudesse ser alterado? Por que julgamos que a falta de interesse sexual do outro é uma agressão abominável contra nós?
Raízes psíquicas profundas
Mais do que isso, talvez essas incompreensões inaceitáveis se prendam a um pormenor que a modernidade não assimilou: a sexualidade tem suas raízes nas cavernas profundas da nossa psique. Primeiramente, todos conhecem a distância entre a vida social e a vida íntima. A vida social exige de nós uma máscara. De acordo com Alain de Botton, não conquistamos o respeito ou o afeto dos outros sem reprimimos severamente tudo o que há em nós de ostensivamente mau: nossa agressividade, nossa imprudência, nossa tendência à ganância, ao egoísmo, ao ciúmes.
Não podemos revelar o que nos vai na cabeça — e nem todos os nossos estados de espírito — sob pena de não sermos aceitos. E eis aqui, a grande satisfação do sexo. Ele permite que alguém conheça o nosso lado secreto, um lado que ninguém vê. E mais do que isso: que aprove. Dai que o sexo também tem um forte componente de satisfação emocional.
Somos aceitos
Atos que parecem extravagantes e assustadores. Gostos que nos envergonhariam se viessem a público. Todas as nossas mais esquisitas intimidades são aceitas por aquela pessoa. Pelo menos aqui, nos tornamos confortáveis na nossa própria pele. O ato sexual revela-se um oásis de aceitação/aprovação contra as máscaras do mundo lá fora.
Fazer amor nos purifica de tudo que julgamos ser ruim em nós. A intensa junção de partes de nós em partes do outro… O ato físico em si, simbolicamente, mostra que somos aceitos na nossa totalidade. E é aqui nesse ponto, onde ocorre a falha e o erro grosseiro da modernidade. Negligencia-se a grande componente psicológica e emocional que existe na sexualidade. O ato sexual está intimamente ligado às nossas grandes questões psicológicas. Não é uma simples fricção física. É um êxtase que sentimos perante uma pessoa que tem a capacidade de aliviar alguns dos nossos maiores medos: o de não ser aceito.
A revelação
A passagem do mundo das aparências para o nosso mundo íntimo é tão significativo que geralmente registramos como um episódio único, um marcador que pode ficar na memória durante uma vida inteira. Geralmente, retemos esse sublime marco através do primeiro beijo. Eis a razão do porquê numa história de amor, ele nunca é esquecido. É no primeiro beijo que admitimos a nossa atração física por alguém e sabemos se somos correspondidos. É através dele que ultrapassamos a linha que separa a dimensão social da íntima. O primeiro beijo é uma espécie de portal onde o nosso eu público sai do isolamento para a aceitação do nosso eu íntimo.
Porém, partilhar a intimidade com o outro é ainda mais profundo do que isso. A psicanálise de Freud teoriza que ato sexual é uma espécie de regresso — inconsciente — para o tempo dourado da nossa existência: os nossos primeiros anos. Primordialmente, chegamos a esse mundo com uma enorme vantagem. Assim que abrimos os olhos, passamos a viver em intensa união física e emocional com uma mãe protetora. Estamos em união física, pele com pele, num corpo que é aconchego e alimento.
Amar através da pele
Somos embalados pelo calor e ritmo do seu coração. E como se não bastasse, somos contemplados com deleite e adoração. E o que fazemos para merecer todo esse amor. Nada. Nenhum esforço. Apenas existimos e basta. Porém, aos poucos entramos em lento declínio. O nosso corpo deixa de agradar e de ser permitido exibi-lo. O bar aberto de leite doce é substituído por sopas ácidas com hora marcada. Enfim, o contato físico torna-se raro. Um beijo ou um abraço de vez em quando.
E não pára por aí. O que somos deixa de importar, é o que fazemos que passa a contar. Temos que ter boas notas. A partir daqui, o declínio é mais rápido ainda. Em breve alguém dirá que deveremos ir a nossa vida, arrumar um trabalho. Enfim, ingressamos no mundo público, começa a contar muito o que “parecemos”. Enfim, o idílio dos primeiros tempos vai sumindo no horizonte.
Anseio interno
Entretanto, passe o tempo que passar, nunca perdemos de vista essa necessidade que carregamos desde cedo: sermos aceitos como somos, independentemente do que fizermos. E na parte mais profunda da nossa psique (atesta Freud) ansiamos por sermos amados através da nossa pele. Buscamos o envolvimento dos braços de outra pessoa, o contato do nosso corpo com outro corpo, alguém a quem beijar e com quem dormir.
E é do parceiro sexual — com sorte, potencializado pelo amor romântico — que vem a promessa desse resgate. É um reencontro com os primórdios de nós — depois de um longo intervalo. Nesse reencontro, o corpo todo é um acontecimento. Há a sensação de que cada célula se reconstrói e se reorganiza. O sangue pulsa veloz até o limite máximo da superfície da pele. No nosso cérebro, todas as sinapses se multiplicam e dançam. A partir de nós, há um realinhamento com os cosmos. E tudo o que é visível é apenas o contato do nosso corpo com outro corpo.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e mestre em filosofia. Mora em Portugal há 18 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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