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Dos pequenos encantamentos
João Reguengos (Unsplash) Joao Reguengos (Unsplash)
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Neste artigo:

Ler um livro e explorar a pé um bairro desconhecido, sem pressa, ensinam uma outra forma de lidar com o tempo, com o nosso tempo.

Os dias da pandemia reduziram-nos os horizontes mais imediatos. Retidos em casa, o mundo já não é só o nosso, aparece-nos ampliado, filtrado pela televisão e pelas redes sociais. Parados, a tensão instala-se, o dia-a-dia perdeu os seus referenciais, é preciso reinventar o tempo, ou o que fazer dele. Apesar de não ser indiferente a essa realidade, notei que, nos últimos tempos, pequenos encantamentos emergiram e foram-se instalando no meu dia-a-dia. O primeiro dos encantamentos, a redescoberta da leitura, do prazer de ler um livro. Forçosamente mais caseiro, nunca como agora foi tão claro como todos estes écrans filtravam a minha “linha do horizonte”, condenando-me a uma vivência do tipo “eterno presente”. Reabilitei então um hábito antigo quase esquecido, o da leitura prolongada, pausada. O segundo dos encantamentos, descobrir novos bairros da minha encantadora cidade de Lisboa.

Todos falavam que era um bairro recatado, inacessível, elitista, povoado pela aristocracia da cidade, gerando uma ideia preconceituosa do bairro. Recentemente, virou notícia porque a excêntrica popstar Madonna, quando decidiu mudar-se para Lisboa, escolheu exatamente esse bairro. A Lapa é um dos bairros mais antigos da cidade. Fundada em 1770, escassos anos depois do trágico terramoto de Lisboa de 1755. Nessa altura, para lá se mudou parte da alta burguesia da cidade, cujas casas, foram destruídas. Não por acaso, é atualmente o bairro de Lisboa que mais embaixadas acolhe, tal a profusão de pequenos e charmosos palacetes ali edificados. Fui arriscando breves passeios no bairro, pausadamente, durante alguns dias. Parava, contemplava as casas, os pequenos detalhes de bom gosto, invisíveis a quem por ali circula de forma mais apressada.

encantamentos

Mario Rui Andre (Unsplash)

Redescobri o tempo

Hoje, esse encantamento das caminhadas lentas, esclareceu-me a imprecisão. A Lapa é um bairro verdadeiramente charmoso. Não há grandiosidade nos prédios nem no traçado das avenidas. Nada disso. As ruas são estreitas, algumas em forte declive, outras até algo acanhadas. Mas ali, a beleza advém de uma elegante sobriedade, de postura cosy. Prédios de pequena dimensão, muito bem cuidados, com flores coloridas emergindo das pequenas varandas. Música clássica jorrando de janelas abertas, um artista aprimorando a sua mestria no saxofone, inundando os transeuntes de uma companhia afetuosa. Ou até um casal de meia-idade, tomando um copo de vinho na varanda, curtindo a serenidade cúmplice da tarde, rendido à deslumbrante vista do Tejo, lá ao fundo da colina. E assim descobri a Lapa, nela circulando sem pressas, deixando-me surpreender com cada rua.

Não dou importância ao que se diz sobre o pós-pandemia, um suposto “novo normal” ou qualquer outra antevisão deste tipo. Interessa-me muito mais o que redescobri para lidar com o meu tempo, ou com a forma de o aproveitar. Falamos muito de transformação, de gestão da mudança, nas pessoas e nas empresas. Mas esquecemos de reconhecer o básico. Que a mudança começa em cada um de nós. E mais, que essas mudanças começam titubeantes, quase envergonhadas, sem darmos por elas. Faça isso, despoje-se dos velhos hábitos e agarre os encantamentos que estão ali, mesmo ao virar da esquina.


Mário Romão é português, professor na Universidade de Lisboa, e gosta de contar sobre as coisas boas que descobriu durante a pandemia.

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