É possível mudar o que sentimos?
É possível mudar as emoções? Podemos compreender ou não as nossas emoções. Podemos escondê-las do olhar do outro — e até de nós mesmos. Podemos estar cientes dos seus efeitos nocivos e do quanto elas nos afetam, mas, dificilmente, conseguimos fugir delas.
Podemos compreender ou não as nossas emoções. Escondê-las do olhar do outro — e até de nós mesmos. Mas, dificilmente, conseguimos mudá-las.
Precisamos assumir. É muito difícil lidar com as nossas emoções. Somos uma espécie de palco onde a raiva, a alegria, o medo, a tristeza, a admiração, a timidez e muitos outros personagens atuam. E, na maioria das vezes, assistimos passivamente ao espetáculo, sem saber o que fazer. Às vezes nem sequer sabemos porque sentimos o que sentimos. Temos, inclusive, dificuldade em dar nome ao que sentimos.
Quando a emoção está no terreno do positivo — como o encantamento e a alegria — está tudo bem. O problema é quando o que sentimos dói, incomoda ou nos constrange. A nossa tendência é tentar mascarar ou negar. Estamos ali, perdidos e acuados, paralisados pelo que se passa dentro de nós. Olhamos à volta e eis que tudo parece normal. Então fingimos que está tudo bem e — a semelhança do que fazem alguns animais em perigo — mimetizamos. Tomamos as cores daquilo que nos rodeia e tentamos seguir em frente.
Resolve?
Não resolve. A maquiagem pode durar algumas horas, dias. O mimetismo é apenas um truque para facilitar uma fuga. O que sentimos continua lá. Há um mal-estar instalado. Não conseguimos digerir a emoção e nos sentimos inseguros e inquietos. Como o fingir que está tudo bem não funciona, qual é o passo seguinte? Persistimos na fuga. Agora, tentamos a fuga de nós mesmos e buscamos os comportamentos compensatórios como a comida, o álcool, as compras, os relacionamentos e até o consumo de ansiolíticos e antidepressivos.
Dores crônicas
Essa estratégia é boa ? Também não. Além de não resolver, perpetua e agrava o problema. Quando não se lida com o que se sente, ele não desaparece. Para além de não desaparecer, perde-se a oportunidade do exercício do autoconhecimento. Quando não se “vive” uma emoção que incomoda, ela permanece como uma dor crônica.
Entretanto, é muito difícil não escolher esse caminho. Primeiro porque ele parece mais fácil e, segundo, porque temos essa prática interiorizada. Desde a infância damos início ao exercício de encobrir os sentimentos “não bons”. E, quando chegamos à idade adulta, a nossa ignorância emocional está praticamente consolidada — somos analfabetos emocionais.
Infelizmente, o prejuízo não fica restrito à esfera do autoconhecimento. Os sentimentos, quando interditos, passam por duas metamorfoses. Transformam-se em mágoas e ressentimentos ou materializam-se no corpo físico, transformando-se em doenças. Às vezes, conseguem ir para os dois destinos ao mesmo tempo.
O que fazer?
Há um arsenal enorme de caminhos. Eles vão desde sessões de psicoterapia, passando por meditação e yoga, até cursos de vivências imersivas. É verdade. Esses caminhos também não são fáceis. Principalmente porque temos a inclinação para racionalizar. Pensamentos como “não faz o menor sentido o que eu sinto” ou “eu não acredito que eu estou sentindo isso”, “isso vai passar” empurram as emoções para debaixo do tapete.
Por outro lado, também conhecemos os benefícios de ocultar o que sentimos. E temos uma vasta experiência nesse campo. Afinal, nem sempre podemos falar o que estamos sentindo e o “colocar para fora” pode ser sinônimo de brigas, discórdias e fraturas irreversíveis. Face a isso, a pergunta que vem a seguir é: Será que estamos mesmos condenados a assistir passivamente aos nossos desatinos internos? Será que não temos o poder de veto sobre o que sentimos? As nossas emoções terão sempre a última palavra?
Emoções de Sartre
E aqui entra a ajuda da filosofia. Não precisamos estar completamente sujeitos ao que sentimos. Quem o diz é Jean-Paul Sartre. O existencialista francês, nos idos dos anos 30, insatisfeito com as principais teorias sobre as emoções — principalmente as de William James e Sigmund Freud — decidiu investigar. O filósofo que acreditava que o homem estava “condenado à liberdade” considerava inaceitável a ideia de que somos reféns do que sentimos. Para ele, era difícil aceitar que nos apaixonamos ou somos “tomados” pelos ciúmes. Na preciosa obra Esboços de uma Teoria das Emoções, Sartre defende que as emoções são coisas que “fazemos”.
Mude a emoção
Sartre identificou primeiro a gênese da emoção. Isto é: quando o mundo — das nossas necessidades, desejos, medos e esperanças — é confrontado com a dureza e a agressividade da realidade; Quando a vida à nossa frente se torna difícil e exigente, ou quando não conseguimos enxergar uma saída; Quando percebemos que o nosso caminho está obstruído e, no entanto, precisamos continuar, o que fazemos?
Optamos por “mudar” o que está no nosso poder: o nosso mundo interior e é aqui que produzimos as emoções”, diz Sartre. Isto é: As emoções tem um propósito e são intencionais.
Por exemplo, “produzimos” a raiva para ela nos ajudar na busca de uma solução ou para resolver uma situação tensa. Ok. É fácil aceitar esse exemplo. Mas e quando, sem nos darmos conta, somos “possuídos” pelo demônio dos ciúmes? É uma reação a uma insegurança já instalada.
Use o racional
Apesar dessas “respostas” espontâneas, Sartre defende que podemos neutralizar ou modular as emoções recorrendo ao racional ou mesmo outra emoção. Para Sartre, certas ações — definidas pelo racional — transformam o nosso mundo emocional como magia. Um exemplo são as rotinas de conforto e aconchego que fazemos em casa. Estão nessa categoria os banhos de imersão, ouvir música, cozinhar ou qualquer ritual de espiritualidade como simpatias, orações ou a meditação.
Às vezes, basta apenas um único pensamento racional para aniquilar uma emoção. Há um exemplo clássico: a “voz racional” da raposa na célebre fábula do escritor grego Esopo (620-564 a.C): “as uvas estão verdes”. A raposa deseja as uvas, mas constata que elas são inalcançáveis. Instala-se a tristeza, o medo… Porém, a raposa decide aniquilar essas emoções e “produz” o seguinte pensamento: “estão verdes, muito ácidas, não gosto delas assim”. Embora esse pensamento não altere as propriedades químicas das uvas, ele altera completamente o mundo da raposa, tornando-o muito mais suportável.
Use outra emoção
Além do socorro do pensamento racional, emoções dolorosas também podem ser aplacadas por outra emoção. Talvez a que mais utilizamos seja a admiração. É por essa razão que amamos tanto a arte, monumentos históricos e a natureza. Nietzsche certamente tinha isso em vista quando afirmou que “temos a arte para que a verdade não nos destrua”. O que é a nossa tristeza diante da visão da Acrópole, em Atenas, onde Sócrates e Platão se encontravam para cultuar os deuses? Ou a visão do encontro do rio Tejo com o Atlântico? Ou a densidade mágica das florestas nativas do Brasil? Diante desses cenários, relativizamos, nos sentimos menores e a nossa tristeza também.
Corpo no comando
E não ficamos por aqui, o corpo físico também pode alterar a emoção que domina a mente. Ele pode ser um poderoso aliado para lidar com uma emoção indesejada. Antecipando ideias contemporâneas da ligação entre corpo e mente, Sartre especulou que as ações físicas nos ajudam a produzir emoções. Nós cerramos os punhos para potencializarmos a nossa raiva, as lágrimas produzidas pelo corpo ajudam a lidar com a tristeza. Mas podemos ir além desses mecanismos já conhecidos.
Vamos imaginar que você acorda pessimista, com medo da vida — há dias assim. Você se levanta, arruma-se e sai de casa. Esmagado por um peso imaginário, você caminha ligeiramente curvado, olhos fitos no chão — seu corpo acompanha a sua mente. Agora experimente mudar a postura. Levante o olhar em direção à linha do horizonte, abra o peito, contraia levemente o abdómen e acelere o passo. Em dez minutos de caminhada, o sentimento de derrota dará lugar à altivez. Você notará um ganho de energia e força. A tristeza foi embora. Experimente.
Toda emoção
A ideia sartreana é bonita e em alguns pontos coincide com o estoicismo e com a psicologia positiva. Ele quase sugere que temos controle direto sobre as nossas emoções. Não é verdade.
Não conseguimos agir sobre tudo. Estamos lançados na complexidade. Temos ainda que lidar com as nossas crenças, humores, carências, desejos. É como se fizéssemos coisas com as mãos e corrêssemos ao mesmo tempo. Não dá para dar conta de tudo.
À parte isso, nem sempre temos a sorte de nos convencermos de que as uvas estão verdes. Mas eu gosto de pensar que temos um controle indireto. As emoções são um tipo de tecnologia cognitiva, um ferramenta que podemos usar para mudar o nosso mundo interior. E elas não servem apenas para tornar suportável um mundo doloroso. As emoções podem nos ajudar a vermos o mundo real como algo valioso e cheio de maravilhas. Um mundo povoado de emoções positivas, onde vale a pena viver.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e mestre em filosofia. Mora em Portugal há 18 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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