O que sentimos é capaz de nos matar
A síndrome do “coração partido” mostra que as triviais expressões “aperto no peito” e “quebrou o meu coração” estão muito mais próximas das doenças físicas do que das metáforas poéticas.
A síndrome do “coração partido” mostra que as triviais expressões “aperto no peito” e “quebrou o meu coração” estão muito mais próximas das doenças físicas do que das metáforas poéticas.
Há muito que o mundo se apaixonou pelo “Penso, logo existo” de filósofo francês René Descartes. Não é sem razão. Essa máxima — a mais repetida de toda a história da filosofia — tem um apelo irresistível. A ideia de que estamos no comando, que tudo depende da nossa capacidade de pensar, conforta; traz segurança e nos mantém otimistas. Eu mesma tento ensinar isso ao meu filho. Tento incutir nele a ideia de que, se ele se esforçar, pode conquistar qualquer coisa. Isso não é bem verdade, mas precisamos desse tipo de pensamento para seguir em frente. O problema é que ele esmaga uma verdade maior e mais importante: o que sentimos. Na nossa estrutura mental, o que sentimos é a base e vem antes do pensamento. Todo o nosso cognitivo — a capacidade de adquirir conhecimento e absorver aprendizados — é construído a partir do que sentimos.
Ele é tão mais relevante que mesmo quando o cognitivo vai embora, o que sentimos permanece. Depois da morte do escritor Gabriel García Márquez, foi publicado um artigo em que um jornalista relata o último encontro entre o escritor e um amigo, à mesa de um café. Na altura, o autor de Cem anos de Solidão, que já estava em estado de demência, dirigiu-se ao amigo: “Não sei quem você é, mas sei que gosto muito de você”. Ele já não conseguia reconhecer o amigo, mas o sentimento que tinha por ele permanecia. Estava lá.
Existo, logo sinto
Ainda assim, para o nosso próprio prejuízo, a valorização do pensamento continua na cotação máxima. Forjada pela cultura, é uma ideia com raízes profundas, difíceis de arrancar. Apesar da supremacia óbvia das emoções, seguimos acreditando que somos seres racionais, senhores da nossa casa. Com isso, levamos a vida de costas voltadas para o que sentimos e também para o que os outros sentem. Ao amigo deprimido enumeramos as razões pelas quais ele não deveria estar prostrado. Recomendamos que se divirta, que saia de casa — “que tenha força de vontade”. Ao ansioso, prescrevemos serenidade e fazemos uma lista das razões para viver o presente e não ansiar pelo futuro. Afinal, não há sintomas físicos evidentes. O mal não existe, “é uma coisa da sua cabeça”. Basta ter força de vontade, ter um pensamento de qualidade e… passa. Apesar de a ansiedade e a depressão já constarem no topo da lista das doenças que mais matam, continuamos a minimizá-las.
Da cabeça para o corpo
Porém, nada é mais negligenciado quando se trata de perdas e rupturas amorosas. “Você é bonita, inteligente e talentosa. Arrumará outro logo”. “Parte para outra, mulher é o que não falta neste mundo. “Ah! Esquece, você merece alguém melhor”. O que escapa a esses “conselheiros” é que essas dores existenciais também atingem o corpo físico.
O que sentimos pode desencadear as mais diversas síndromes e doenças. A sobrecarga das perdas e de eventos estressantes fazem o corpo colapsar. A cada desgosto, o nosso sistema de defesa enfraquece e ficamos mais propensos a processos inflamatórios, perda abrupta de peso e todo o tipo de doenças. Desde as clássicas taquicardias e problemas respiratórios — passando por eczemas de pele, ansiedade e ataques de pânico — até o surgimento de tumores.
Esse não é um fato novo. Desde a antiguidade, especula-se sobre a ligação direta entre os males psíquicos e os físicos. Isto é: a doença acontece primeiro na mente e depois se materializa no corpo. A novidade é que essa crença está sendo mapeada e confirmada pela ciência. Há um estudo que enumera 43 acontecimentos capazes de desencadear doenças físicas. Por razões óbvias, não vou enumerar todos, deixo aqui os cinco primeiros, por ordem de importância: a viuvez, o divórcio, a separação, ser preso e a morte de um familiar. Um outro estudo inglês aponta que os primeiros três meses de luto — seja pela morte do cônjuge ou a morte da relação — é o período da vida com o maior risco de morte.
Coração partido
Porém, mas do que adoecer o corpo, o que sentimos recai de forma contundente num órgão específico: o coração (sim, precisamos dar razão aos poetas). É verdade que em momentos de êxtase e estados de felicidade sentimos “o coração explodir de alegria”. Experimentamos a plenitude da vida quando “amamos de todo o coração”. Ocorre que quando chegam as decepções e as rupturas inesperadas, o coração despenca do oitavo andar e se quebra em pedaços.
Quando tudo parecia bem, há uma reviravolta e tudo o que era, deixa de ser. A pessoa que fazia parte da sua vida — que estava no primeiro e no último pensamento do dia — repentinamente desaparece. Enfrentar o choque e a dor da perda encolhe-nos. Deixa-nos, literalmente, “para morrer”. Mais do que metáforas, essas expressões parecem capturar algo essencial sobre como nos sentimos e que não conseguimos traduzir verbalmente. As dores emocionais atingem em cheio o coração e a medicina tem tomado nota das consequências: enfartes, arritmias, paragens cardíacas, hipertensão severa, hemorragia cerebrovascular e morte súbita.
Coração danificado
A ciência mostrou ainda que o “coração partido” não é apenas em sentido figurado. Um estudo japonês fez uma análise detalhada sobre essa anomalia, conhecida como síndrome do “coração partido” ou miocardiopatia Takotsubo — palavra japonesa que denomina um tipo de armadilha para capturar polvos. A pesquisa confirma que o sofrimento causado por uma separação — ou a morte de alguém íntimo — desencadeia reações semelhantes ao infarto. O quadro assemelha-se a um ataque cardíaco, mas sem que haja bloqueios nas coronárias. Mas mesmo sem essa patologia associada, mata do mesmo jeito.
O enfarte é a consequência mais grave, mas não é a única. Antes dele, há um mal-estar generalizado, palpitações, dificuldade respiratória, ataques de pânico e ansiedade. Estudos apontam que 70% dos infartos do miocárdio nos homens acontecem no pós-divórcio. Porém, um estudo de Harvard de 2010 aponta que a síndrome do “coração partido” afeta sobretudo as mulheres. A explicação dada em nota de rodapé sugere que talvez as mulheres — culturalmente e biologicamente — são mais propensas a “sentir demais”.
E, para confirmar, um estudo da neurocientista Naomi Eisenberger mostra que a descrição que fazemos do que sentimos — como “meu coração estava apertado”, “meu coração queria sair pela boca” — não são metáforas, são realmente dores físicas. Resumindo uma longa história, ela diz que o cérebro não faz distinção entre um osso quebrado e um desgosto amoroso. Os dois males são “compreendidos” pelo cérebro da mesma forma.
Cuide das batidas do coração
Enquanto a medicina das emoções não chega, é preciso estar atento. Não considere covardia o medo de novos relacionamentos: pode ser apenas uma questão de saúde. Para o coração, o limite entre a morte real e a morte psíquica é muito difuso. Bem… Para tornar isso mais leve, trago o outro lado da moeda. Os verdadeiros e bons encontros também contemplam um novo e melhor ritmo cardíaco. E esse batimento faz uma blindagem de males físicos e psíquicos.
E é entre esses dois riscos que consiste toda a aventura do viver. Não conseguimos evitar todas as tempestades da vida. Pode-se “morrer de amor”, mas também pode-se “viver de amor”. Porém, o batimento cardíaco — a trilha sonora da nossa existência — precisa ser vigiado. Cuide bem do que você sente.
Margot Cardoso (@margotcardoso) é jornalista e mestre em filosofia. Mora em Portugal há 18 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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