E se…
A expressão que nos assombra também nos oferece um mundo de possibilidades
A expressão que nos assombra também nos oferece um mundo de possibilidades
“‘E’ e ‘se’ são palavras que, sozinhas, não apresentam nenhuma ameaça. Mas se colocadas juntas, lado a lado, elas têm o poder de nos assombrar a vida toda. E se… E se… E se…”
A frase é do filme Cartas para Julieta. Na história, a jovem Sophie convence Claire a percorrer a Toscana procurando o homem por quem esta se apaixonou numa viagem pela Itália há 50 anos. Sophie se vale do poder do “e se…” para instigar Claire.
E se Claire tivesse ficado na Itália para viver aquele amor?
E se hoje ela aceitasse o convite de Sophie para voltar até lá e procurá-lo?
Claire reage à provocação e elas caem na estrada entrando num universo cheio de possibilidades.
Há muitos anos fiquei presa dentro do vagão escuro de um metrô nos subterrâneos de Paris. Eu era uma viajante inexperiente. Aquele era o meu primeiro dia mundo afora e já começava mal: chovia, era inverno, passava das 21h e eu não falava a língua da cidade. Também não havia uma só vaga disponível nos albergues ou pensões de Paris, smartphones ainda não tinham sido inventados, muito menos havia GPS ou sistemas de reservas pela internet. Aliás, o que era internet?
Informações não confirmadas obtidas aqui e ali davam conta de que além dos limites de Paris, num lugar não exatamente seguro, um albergue (que não aparecia no mapa) costumava acolher viajantes em apuros a qualquer hora e em qualquer condição. E se eu encontrasse o tal lugar? Entrei vacilante num metrô que saía da cidade. No meio do caminho, as luzes se apagaram e a velocidade diminuiu até o vagão parar. Pane no sistema.
Não passou muito tempo e eu já padecia me escorando nas barras metálicas do vagão lotado de gente desconhecida, metida num casaco pesado, segurando nas costas a bagagem estufada de coisas desnecessárias. Suava e chorava discretamente.
Estava arrependida e pensava em não continuar. Talvez fosse melhor voltar para casa e viajar somente quando estivesse mais madura.
Quase meia hora depois, o deslizar recomeçou, as luzes se acenderam e a cadência gostosa do vagão sobre os trilhos foi retomada. Na derradeira estação, a porta do metrô se abriu. Do lado de fora, uma senhora me encarava ignorando os empurrões no vaivém da multidão. Apoiava entre o punho e o cotovelo um cachorrinho branco.
Preferi não me mover, mas ela permanecia ali, firme, como se aguardasse uma decisão minha. Tinha os cabelos prateados, um pouco encaracolados e que não chegavam a tocar os ombros. Seu corpo era do tipo mignon, assim franzino. Não pareceu impaciente com minha indecisão, mas foi insistente quando me fez um gesto para seguí-la.
– E se…eu for?
Tentei acompanhá-la. Ela andava depressa. Driblava a gentarada com tanta destreza… Fui galgando as escadas no seu encalço, me desviando das pessoas e quase a perdi de vista saindo da estação. Deu tempo de olhar ao redor e notar que a vizinhança, meio maltratada, era um pouquinho diferente das imagens que eu tinha de Paris.
Cadê ela? Lá numa esquina, parada, aguardando minha atenção. Continuou, dobrou agilmente uma, duas, três esquinas… E eu já sem fôlego, seguindo seu rastro com esforço. Então parou. Apontou para o final de um beco onde uma lâmpada acesa pendendo sobre uma porta larga contrastava com a escuridão. Era o tal albergue.
– Como essa mulher sabia o que eu precisava?
Antes que eu pudesse agradecer… Zupt! Ela se foi.
E se… eu não tivesse aceitado a ajuda?
O Chamado
Quando reagi ao convite da mulher dos cabelos prateados, o caminho para uma longa viagem se pavimentou à minha frente. Dali em diante outras pessoas e situações cruzariam meu destino de tempos em tempos, levantando a questão que apelidei de “o chamado”.
Como acontece nos enredos desde as antigas fábulas até os filmes de hoje, o “e se…” é, para mim, aquele momento em que o herói se vê diante do chamado para uma aventura e precisa tomar a decisão: aceita ou recusa?
Para o “e se…” não existe resposta certa ou errada.
E se eu for?
E se eu ficar?
E se eu disser sim?
E se eu disser não?
O que o “e se…” quer da gente é disposição para agir. Mas agir com o coração. E a cada vez que eu agia, mais uma etapa da vida se desdobrava.
Mas só recentemente aprendi que tem mais uma coisa que o “e se…” exige.
É coragem.
Quem me ensinou isso foi Flávio, um viajante.
Flávio encarou algumas duras verdades da vida já na infância. Aos 11 anos recomeçou sua trajetória do zero junto com sua mãe na base da determinação e da garra.
Flávio cresceu e foi vencendo etapas, mas sempre pensando que certos sonhos – como o de viajar para o exterior – não eram para ele. Faltava a Flávio a sensação de ter seu lugar no mundo, de pertencer a ele.⠀
Até que foi apresentado a grandes possibilidades!
E se ele… hospedasse em sua casa estrangeiros que ele não conhecia?
E se ele…os hospedasse mesmo não sabendo falar uma palavra em inglês?
Flávio disse sim a todos os chamados. E atraiu gente da Alemanha, da Turquia, do Egito… Passou a querer viver o que aquelas pessoas estavam vivendo. Mas ainda achava impossível.
Um dia, durante a reunião de uma organização que desenvolve a liderança em jovens por meio de viagens de cunho social, Flávio foi desafiado a se imaginar no futuro. Deveria escrever uma carta endereçada a uma pessoa amada contando o que havia realizado nos últimos 30 anos.
E se ele escrevesse para a mãe, dizendo que realizou todos os sonhos que tinha, inclusive aquele que acreditava não ser para ele? Escreveu.
Mas e se… Flávio transformasse a carta em verdade? E foi o que ele fez. Planejou, economizou e partiu para viajar.
A Perda
Meses mais tarde, já na Ásia, Flávio perdeu todo seu dinheiro e, com ele, a garantia de poder continuar. Na confusão, abriu a agenda do celular e desceu até a letra M. E se… ligasse para a mãe?
Não.
Passados alguns dias vivendo entre o caos e a bondade de desconhecidos, Flávio se deu conta do chamado.
E se… a perda fosse a oportunidade para um novo recomeço?
E se… ele aceitasse o desconhecido?
E se… ele não voltasse para casa, mas continuasse a viagem, contando de agora em diante apenas com a humanidade e com a gentileza de cada um que cruzasse seu caminho?
Decidiu continuar.
Dois anos e 27 países depois, Flávio acumula dezenas de amigos e incontáveis momentos de bondade e solidariedade, agora descritos no livro O Mundo que Pertenço. Numa trajetória repleta de momentos de “e se…” , ele vai respondendo a cada chamado agindo com o coração, mesmo quando está diante do controverso ou do inesperado. Flávio se transforma tanto a cada capítulo que, no fim, o leitor quase esquece quem era o frágil rapaz do início da história.
Nas páginas finais, ele revela que foram tantas as pessoas que lhe atribuíram a qualidade da coragem, que precisou pesquisar a fundo o significado da palavra. É quando descobre que “coragem” vem da expressão em latim “agir com o coração”.
O que o “e se…” quer da gente é disposição para agir.
Agir com o coração.
JULIANA REIS é uma viajante de coração inquieto em busca de histórias, pessoas, lugares e experiências que a modifiquem. Seu instagram é @viagenstransformadoras
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