O que aprendi com o crochê
Nas conversas com Anita, resgato as memórias de minha avó e o valor dos trabalhos manuais como nossa companhia A linha enrolada ao dedo, o movimento leve e contínuo que prende e puxa o fio da agulha. A trança é o esboço que inaugura o crochê. São pequenas laçadas que sempre hão de me […]
Nas conversas com Anita, resgato as memórias de minha avó e o valor dos trabalhos manuais como nossa companhia
A linha enrolada ao dedo, o movimento leve e contínuo que prende e puxa o fio da agulha. A trança é o esboço que inaugura o crochê. São pequenas laçadas que sempre hão de me conectar à minha avó, Ana. Sua casa, o quintal, o abacateiro, os bolinhos com canela nas tardes de chuva… e todos aqueles pontos que ganhavam complexidade e beleza pelas suas mãos. Dela herdei o
nome e o interesse pelos trabalhos manuais. Uma pena não ganhar também o azul dos olhos. Pesar maior, no entanto, foi o de não ter aprendido crochê com ela – apesar de toda dedicação e paciência que ela tinha para ensinar.
Vó Ana partiu quando eu tinha quase 13 anos e avançado pouco além das trancinhas coloridas que, às vezes, eu transformava em pulseiras e vendia na escola. Acho que ela não gostava muito de ser fotografada. São raros os registros. Mas as lembranças dela ficaram por toda parte. Não só no carinho que tinha com os netos, no tempero do tutu de feijão que, de vez em quando, alguma tia acerta. Ou no medo das tempestades com raios.
Uma memória física também mora nas colchas, caminhos de mesa, panos de prato e, especialmente, num baú na casa da minha mãe, no qual – até bem pouco tempo atrás –, jaziam dezenas de
peças para as tais ocasiões especiais e que praticamente nunca eram usadas. Minha avó tinha um dom especial para combinar cores. Eu sonhava com os vestidos feitos para minha tia caçula e moderninha. Recordo as almofadas, tapetes e aqueles joguinhos de penteadeira, tecidos com linha fininha. Uma verdadeira relíquia de tempos e costumes que não existem mais.
Ana Paula, à esquerda; no alto, uma das poucas imagens da vó Ana e a família. Acima, Anita, que despertou em Ana Paula as memórias da avó.
O RESGATE DO CROCHÊ
Ainda bem que uma nova onda trouxe de volta a magia do crochê e outras técnicas artesanais. Outro dia chegou até mim o livro Seguindo a Linha – Trabalhos manuais tecidos pela vida (Gulliver), de Anita Guimarães. Folheá-lo foi como mergulhar naquele baú da casa da minha mãe. Anita é uma senhora de 90 anos e, na obra, ela mais do que ensina técnica. Costuradas por afeto e memórias, as histórias contam um pouco sobre sua vida e levam a refletir sobre o tempo, as relações, a linha da vida que ganha leveza na companhia de agulhas.
“Os trabalhos manuais não transformam
só o fio e o tecido. Moldam o coração
e redesenham as mãos de quem os faz,
criando memórias que atravessam o tempo”
Voltado para mãos prendadas e iniciantes, o livro passeia do crochê, que despertou o interesse da pequena Anita, aos 4 anos de idade, perseguindo o novelo que uma tia transformava em tapete, até os trançados de dedos, que a autora diz ter aprendido, recentemente, com a neta mais nova, Bella, que estuda em uma escola Waldorf. Tudo de modo leve e sucinto, permeado de explicações sobre cada tipo de trabalho, dicas, fotografias do passo a passo, ilustrações em aquarela e deliciosos causos – muitos deles sobre as incontáveis mudanças da família de Anita para cidades distintas às margens da ferrovia.
Cada técnica é revisitada como uma estação, com lembranças de determinada fase da vida. Na adolescência, por exemplo, um dos destaques é o filé, que deu cor e um certo ar de exclusividade à bicicleta de Anita. Ela conta que a ideia não foi um mero capricho, mas também uma forma de evitar que os aros das rodas enroscassem na saia, pois era assim que as mocinhas de sua época costumavam pedalar em seus passeios. Outro aspecto que chama atenção é a criatividade da autora para inventar soluções e suas próprias ferramentas. Afinal, não havia toda essa
gama de material disponível nas lojas de armarinhos do interior de Minas. Às vezes, era preciso construir a própria agulha, desmanchar um trabalho para reutilizar a linha em um novo desafio ou demonstrar enorme interesse para merecer ganhar do pai um material encomendado que vinha de longe.
Penso que esse livro veio como mais uma chance para eu avançar com meus módicos conhecimentos em crochê. Gosto de me aventurar pela costura, cartonagem, trabalhos em feltro… Mas, com a agulha grande, sempre me perco na contagem dos pontos, faço as laçadas ora frouxas, ora apertadas demais. Distraio, volto, reconto, desmancho. Maior que a vontade de aprender com as dicas e detalhes era o meu desejo de conhecer a dona daquelas histórias.
Quis saber um pouco mais sobre aquelas mãos que teceram os textos e cada uma das delicadas peças estampadas no livro. Afinal, os trabalhos manuais não transformam só o fio e o tecido. Moldam o coração e redesenham as mãos de quem os faz. A imagem daquelas mãos, fotografadas no passo a passo, me levaram imediatamente a outro lugar: minha infância, com o crochê e o cafuné da vó Ana. A semelhança nos dedos magros, o jeito de segurar a agulha, as pintinhas que chegam com os anos.
O ENCONTRO COM ANITA
Marquei, então, uma visita e peguei a estrada, percorrendo cerca de 58 quilômetros entre as montanhas, rumo a Itabirito e a uma das tardes mais gostosas dos últimos tempos. Aliás, curiosa a ideia que a gente tem do tempo e do envelhecimento. Não esperava que a elegância também pudesse ser tão longeva. Com lenço no pescoço e uma blusa verde que forjava o azul de seus olhos, Dona Anita me esperava na sala de sua casa. Conversava, sorria, lembrava causos e detalhes com serenidade na voz e nos cabelos brancos que, de vez em quando, voavam de mansinho com o vento.
Naquele encontro, entendi também que Anita não é uma artesã convencional. Ela sequer vendeu uma peça até hoje. Os trabalhos manuais sempre permearam sua vida de forma orgânica, enquanto educava os filhos, no contraturno de suas atividades como mãe, esposa e professora de educação física. Quando se levanta para ir até a mesa, observo o modo como se sustenta em duas muletas com a destreza de quem tece um tricô.
Fragilidade da idade mesclada com incrível consciência corporal. Anita contou que reunir todos esses saberes em uma publicação foi também uma forma de homenagear a mãe, Jupyra, com o incentivo de seus seis filhos. Para mim, é como se aquela família quisesse compartilhar seu baú, igual àquele da casa da minha mãe, permitindo que cada lembrança aflorasse dos bordados, crochês e tricôs. Percebo uma grande vontade de que essa linha siga adiante e teça novas redes e conexões. Já quase anoitecendo, pego então a estrada de volta, inspirada a chegar aos 90 e a guardar sempre um espaço e um tempo para minhas costuras – e, claro, o crochê. Penso que, naquela tarde, matei também um pouquinho a saudade de minha avó.
ANA PAULA CARVALHAIS ama costurar tecidos e palavras. Jornalista, mãe, empreendedora e autora do livro Jucaré
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