Sinto muito por quem sente tão pouco
É hora de ouvir a si, e o entorno, especialmente o que soa diferente. E, então promover as mudanças que esse planeta tanto merece
É hora de ouvir a si, e o entorno, especialmente o que soa diferente. E, então promover as mudanças que esse planeta tanto merece
Todo sentimento traz um alerta, um sinal, uma mensagem. Sentimentos indicam se estamos honrando ou negligenciando nossos valores, nos orientam a fazer escolhas e nos motivam a agir e transformar. Por isso, não devem ser evitados.
A meu ver, o mundo está se movimentando para encaixar melhor as suas peças, pois muitas estavam fora de lugar e outras, que são importantíssimas, não tinham seu devido lugar.
Lamentavelmente, no mundo pré-pandemia, temas essenciais para a vida eram “abafados”. Falo da desigualdade social, da injustiça racial, do papel da solidariedade, da compaixão e da empatia.
A crise colocou um holofote em cada um desses pontos, escancarando que mesmo uma vacina milagrosa não transformaria o mundo em um lugar ideal… se esses assuntos vitais não tiverem solução.
Normalmente as grandes mudanças se dão quando o incômodo emocional coletivo vem a ser tão intenso que não mais é possível resignar-se. A consciência fala mais alto que o medo e o ego, mais alto do que crenças estruturais limitantes e promove o movimento, mudanças e novas ações.
Segundo Oscar Wilde, “o descontentamento é o primeiro passo na evolução de um homem ou de uma nação.”
Evolução coletiva e a mudança individual
Mas para a evolução coletiva é preciso começar na evolução e mudança individual. Com o impacto da pandemia no mundo e em nossas vidas, acredito que todos, em diferentes escalas, vivenciaram e ainda vivenciam perdas, luto, medos e tristezas. Aí vem a minha primeira pergunta: Qual é o grau do seu descontentamento? Consegue olhar a dor do mundo? Como está o seu incômodo emocional? Quando a dor visita você…como lida? Resiste, encobre, ignora, transforma em raiva ou ódio e projeta no outro, se vitimiza? Ou aceita e investiga, e através dela se coloca aberta a reaprender para se desconstruir e transformar?
Fugir da realidade e da dor — ou fugir de qualquer coisa — nunca é a melhor opção. Ignorância e repressão impedem todo progresso e movimento construtivo. Precisamos de mudanças. E para tanto é essencial lucidez e coragem. Coragem para ter empatia consigo e também com os outros. Coragem para criar conexões afetivas reais e, a partir desse lugar de conexão, gerar mudanças sociais.
Assim, aceitar a dor é uma rica oportunidade para a reforma pessoal. Ou seja, para a desconstrução pessoal e consequente reconstrução do todo. Não é fácil sustentar sentimentos dolorosos. Passamos a vida na busca pelo prazer imediato tentando evitar o desconforto interno. A maioria de nossas escolhas são feitas para evitar sofrimentos futuros do que para nos aproximar da felicidade. Nos ensinaram que emoções negativas são ruins. Assim, criamos aversão ao sofrimento. Resistimos, camuflamos, fugimos.
Fugir ou não?
Só que quem foge do sentir (positivo ou negativo) nega parte de sua experiência humana e vive pela metade. Rejeita parte de si. E rejeição é uma dor terrível se vem de fora para dentro. Imagina quando vem de dentro e é sufocada. “Eu não consigo respirar”. Quantas vezes ouviu, falou, ou pensou essa frase? George Floyd ficou sem ar e o mundo também. Doeu. O resultado? Você sabe: dor coletiva transformada em manifesto social urgente.
Imagina se todos fugissem da dor de um igual? Estaríamos ainda mais longes um dos outros. E provavelmente não teríamos sobrevivido, pois a sobrevivência da raça humana só é possível quando feita no plural, no coletivo.
Já fugi muito da minha dor. Já escolhi a cegueira que me levava ao conformismo e ao caminho mais fácil, mas nunca ao caminho da felicidade e da liberdade. Nesses últimos anos — e com mais intensidade nessas últimas semanas — tenho feito diferente.
Eu estou explorando o meu mundo interno como se fosse um laboratório de aprendizagem. Escolhi mergulhar sem medo em meus sentimentos e questionar porque reajo assim ou assado, e o que querem me dizer e ensinar. Tenho um pacto com a minha evolução e acredito que a curiosidade e o experimentar são elementos essenciais para esse caminho de crescimento. Assim me abro por inteira, com humildade e sem restrições.
Afinal, se não tenho coragem de ter uma relação honesta comigo, é impossível me relacionar de maneira honesta com qualquer outro ser humano. Imagina com o mundo.
Ser transparente comigo e ter coragem de me olhar por inteira é um ato de respeito, amor próprio e amor ao próximo. Nesses exercícios eu resgatei um dos meus poemas preferidos de Rumi, que compartilho aqui.
A Casa de Hóspedes
O ser humano é uma casa de hóspedes. Toda manhã uma nova chegada.
A alegria, a depressão, a falta de sentido,
alguma percepção momentânea aparece
como visitantes inesperados.
Receba e entretenha a todos! Mesmo que seja uma multidão de dores que violentamente varrem sua casa e tira seus móveis, ainda assim trate seus hóspedes honradamente. Eles podem estar limpando para um novo prazer.
O pensamento escuro, a vergonha, a malícia,
encontre-os à porta rindo,
E os convidem a entrar.
Agradeça a quem vem, porque cada um foi enviado como um guia do além.
— Rumi (Mestre sufi do séc. XII)
Buscando o que é certo
Entendo que é o momento de reaprender a aprender, de se abrir e ter flexibilidade para novas formas de enxergar e existir no mundo. É o tempo de ter coragem para sentir e mudar para evoluir. De buscar fazer o que é certo ser feito, ao invés de buscar estar certo, ou ser reconhecida assim. É hora de ouvir a si, e o entorno, especialmente o que soa diferente. E, então promover as mudanças que esse planeta tanto merece.
Eu estou nessa caminhada. E você?
Ana Raia trabalha há mais de 15 anos com desenvolvimento humano. Ministra cursos particulares e coletivos, palestras e workshops. É estudiosa das ciências humanas e é tão humana quanto você. Seu Instagram é @anaraia. Escreve neste espaço mensalmente, na terceira terça-feira do mês.
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