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No piloto automático, todos praticam hipocrisia
As contradições que levam à hipocrisia são naturais do ser humano, e é preciso estar atento para não cometer injustiças (Foto: Alexei Maridashvili/Unsplash)
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Neste artigo:

É comum julgarmos o comportamento dos outros com severidade, e isso é pura hipocrisia. Por exemplo, imagine que você está dirigindo e um motorista te fecha. Sua reação imediata provavelmente é pensar que essa pessoa é imprudente, egoísta ou simplesmente “um péssimo motorista”.

No entanto, quando você está atrasado para um compromisso e faz algo semelhante, justifica sua própria ação pensando: “Eu não tinha escolha, estava com muita pressa.”

O comportamento é o mesmo, mas a avaliação muda radicalmente dependendo de quem está agindo.

Segundo os psicólogos sociais, fazemos isso para proteger nossa autoimagem e manter a ilusão de que temos controle sobre nossas ações.

Quando atribuímos comportamentos negativos dos outros a traços de personalidade, criamos uma narrativa confortável: “o problema é deles, não meu”.

Por outro lado, ao justificar nossas próprias ações com base no contexto, preservamos a ideia de que somos essencialmente bons e que nossas decisões são sempre racionais.

Esse mecanismo psicológico, ainda que útil para evitar o desconforto da dissonância cognitiva, pode nos levar a julgamentos injustos e incoerências.

Hipocrisia é cuspir para cima

A cultura popular brasileira chama isso de “cuspir para cima” — aquele momento em que, no auge da nossa superioridade moral, desaprovamos os atos alheios com uma régua altíssima.

O problema? Inevitavelmente, o cuspe volta. Quando isso acontece, e você se pega cometendo atitudes semelhantes às que criticou, pode surgir uma sensação amarga de autocrítica e até repulsa de si mesmo.

Essa aversão se manifesta como autocondenação — seja porque você ainda considera a atitude reprovável ou porque, agora, compreende melhor as circunstâncias envolvidas e lamenta ter julgado outra pessoa.

Considere, por exemplo, a situação de Xuxa. Em 2019, ela era vista como uma defensora do envelhecimento natural. Com 56 anos, cabelos curtíssimos e rugas à mostra, enfrentava com coragem comentários negativos nas redes sociais.

Em uma ocasião, chegou a criticar publicamente o procedimento de harmonização facial da ex-paquita Andrea Sorvetão, dizendo que algumas mulheres exageravam e acabavam com resultados “deformados”.

Avance cinco anos: em 2024, a própria Xuxa virou manchete por realizar múltiplos procedimentos estéticos. E, se você condena Xuxa por isso, saiba que está cuspindo para cima também.

Todos somos hipócritas em algum nível. Robert Kurzban, psicólogo evolucionista e autor do livro Why Everyone (Else) Is a Hypocrite, argumenta que a hipocrisia não é uma falha moral. Mas uma característica natural do design da mente humana. Segundo ele, entender esse funcionamento é essencial para lidarmos melhor com nossas inconsistências.

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Somos compostos por módulos em conflito

Kurzban parte da visão evolucionista de que nosso cérebro evoluiu para lidar com desafios específicos ao longo da evolução.

Ele se baseia na Teoria Modular da Mente, que postula que desenvolvemos “módulos” mentais especializados, cada um projetado para uma função — como detectar perigos, buscar recompensas ou navegar em interações sociais.

Esses módulos operam de forma independente e, de forma frequente, competem entre si para influenciar nosso comportamento.

Por exemplo, um módulo pode focar na preservação da saúde a longo prazo, enquanto outro prioriza recompensas imediatas, como o desejo por brigadeiro gelado.

Quando um módulo é ativado, ele pode assumir o controle, mesmo que contradiga as prioridades de outro módulo. É por isso que o assalto à geladeira à noite é tão comum: o módulo de recompensas supera o de autocontrole, já exaurido após um dia de esforço cognitivo.

Erros e decisões infelizes, portanto, muitas vezes resultam de motivações contextuais e não de falhas de caráter.

Somos compostos de luz e sombra. O egoísmo e o altruísmo, a autenticidade e a conformidade, a razão e a emoção — todas essas forças coexistem em nós, alternando o controle conforme as circunstâncias.

Explicando a inevitável incoerência

Para Kurzban, a competição entre módulos explica nossos comportamentos aparentemente incoerentes. Ou seja, a incoerência não reflete falta de integridade, mas a complexidade de uma mente moldada pela evolução.

Quando você debate entre ir à academia ou dormir mais uma hora, ou entre economizar dinheiro e comprar algo desejado, está presenciando essa disputa em ação.

No caso de Xuxa, por exemplo, Kurzban provavelmente diria que, em 2019, o módulo de autocontrole estava ativo, ajudando-a a resistir às pressões sociais e se manter fiel aos seus valores.

Já em 2024, o módulo de status social — responsável por atender às demandas de aceitação e aparência — assumiu o controle.

A aceitação social, afinal, é uma necessidade evolutiva. Estudos mostram que a rejeição ativa circuitos cerebrais similares à dor física. Portanto, a contradição não faz de Xuxa incoerente, mas humana.

Talvez, se você estivesse em uma situação similar, não precisaria de tanto sofrimento para tomar a mesma atitude—ou, quem sabe, precisaria ainda mais.

O poder transformador de reconhecer nossa hipocrisia

Mas veja, aceitar que as contradições fazem parte da nossa natureza não significa que tudo seja aceitável. Reconhecer que somos influenciados por circunstâncias externas ou conflitos internos não elimina a necessidade de refletir sobre as consequências de nossas ações. Pelo contrário, torna essa reflexão ainda mais necessária.

Por exemplo, esta consciência nos permite:

1. Ampliar a empatia

Reconhecer as contradições humanas permite diálogos mais construtivos e justos. Em vez de julgar os outros com uma régua alta, você pode iniciar conversas respeitosas que beneficiem todos os envolvidos.

2. Encarar os próprios erros com leveza

Aceitar suas contradições ajuda a entender que os erros são parte da jornada, e não sinais de inferioridade. Assim, torna-se mais fácil assumir responsabilidade, pedir desculpas e aprender com eles, sem a necessidade de culpar terceiros ou as circunstâncias.

3. Agir de forma alinhada aos seus valores

Entender que as ações são impulsionadas por motivações conflitantes pode ajudá-lo tomar decisões mais conscientes em momentos importantes.

Por exemplo, no ambiente de trabalho, você pode perceber que está sendo guiado pelo desejo de se destacar, comparando-se aos colegas. Reconhecer essa motivação pode ser a chave necessária para se conectar à motivação mais importante que é colaborar e contribuir para o sucesso da equipe.

De forma similar, em casa, durante uma disputa com seu filho, o módulo responsável por preservar seu status e controle na dinâmica familiar pode estar dominando a situação. Porém, ao reconhecer que sua real motivação é ajudar seu filho a aprender e crescer, você pode ativar outro módulo — o de cuidado e orientação.

Isso muda a forma como você responde, permitindo uma abordagem mais colaborativa e alinhada aos seus valores, como paciência e empatia.

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