Entenda o que é culpa e saiba como ressignificar esse sentimento
Não nascemos para sermos infelizes nem para carregar culpas através dos milênios. Conheça as origens de conceitos-gatilhos para a culpa e veja dicas para ressignificar esse sentimento.
- Afinal, o que é a culpa?
- Quando a culpa causa danos
- As origens do conceito da culpa
- Carga da culpa atinge mais as mulheres
- Como desconstruir a culpa feminina
- Troque o termo "culpa" por "responsabillidade"
- O cuidado de não contaminar as crianças com a culpa
- Perdoar para restaurar a vida plena, sem culpa
- Conte a sua história de outra forma
Sentimos culpa por tudo e a todo momento, tanto por aquilo que fizemos no passado como pelo que não fizemos ou, ainda, pelo que gostaríamos de fazer, mas não poderemos devido a alguma circunstância que foge ao nosso alcance.
Nos culpamos por coisas corriqueiras, como não termos olhado a previsão do tempo e sermos surpreendidos pela chuva no dia do passeio há muito agendado.
Nos culpamos por ter ido dormir tarde ou por termos acordado cedo demais; por termos deixado as crianças comerem alguma tranqueira.
Também por termos pagado mais caro do que o habitual em uma peça de roupa; ou por não termos o tempo necessário para realizar todas as demandas.
Assim como nos culpamos por não termos feito um curso que, no momento, seria muito útil para nossa carreira profissional; ou por não termos juntado dinheiro.
Mas também, e tantas vezes, nos culpamos por acreditar que não somos bons o suficiente; pelos nossos pensamentos e vontades; e até pela atitude do outro, como se ela fosse nossa responsabilidade.
Ou ainda, em casos de maior gravidade, assumimos a culpa mesmo quando somos as vítimas da história.
Afinal, o que é a culpa?
De forma breve, podemos entender a culpa a partir do fracasso em relação à projeção de algo ou de alguém, quando não atingimos as expectativas criadas.
Claro que esse sentimento não deve ser extirpado por completo, uma vez que existe para que possamos perceber o mais rápido possível onde o erro está e como corrigi-lo.
“A culpa é benéfica à medida que você passa por ela, compreende o que está sentindo e reflete sobre o que já passou pela sua vida e provocou esse sentimento. E assim consegue tirar aprendizados disso”, comenta a psicóloga clínica Denise Monteiro.
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Quando a culpa causa danos
Os danos, todavia, começam quando a pessoa não consegue sair dessa faixa vibracional culposa e passa o tempo todo apenas remoendo situações e dando permissão ao sofrimento.
Como consequência, entra em ação a perturbação psicossomática, resultando em problemas físicos. Como dor em partes do corpo, alergias da pele, problemas no sistema digestivo, dificuldades para dormir, mau humor, ansiedade e até depressão, no médio e longo prazo.
O que se observa, portanto, é o agravamento do sentimento e a paralisia da vida. É hora de buscar ajuda.
“Um sinal muito importante é quando a pessoa começa a constatar que a todo instante está relembrando aquela ação ou não ação que gerou a culpa. E, em vários momentos do dia, vem um gatilho que remete à situação novamente. Quando consegue identificar os gatilhos, já é um ponto positivo. Mas muitas têm grande dificuldade de sair do looping”, enfatiza.
As origens do conceito da culpa
Não remoer situações que trazem sofrimento
A origem do conceito da culpa é milenar. Os ocidentais o relacionam mais à tradição judaico-cristã, que o construiu sofisticadamente, como pode ser observado em Gênesis, o primeiro livro da Bíblia.
Mas entre os orientais a culpa se instala quando uma pessoa não honra ou não homenageia corretamente os seus antepassados. Assim como ela também está presente no conceito da Roda de Samsara, atribuído aos hindus, e nas tradições de tribos primitivas.
Nos restringindo ao Ocidente, precisamos remontar ao mito de Eva, que se torna culpada e devedora quando, por sua curiosidade e desobediência, “faz” todo ser humano perder o direito ao paraíso.
Carga da culpa atinge mais as mulheres
“À mulher caberia a culpa pelas punições do divino impostas à humanidade como um todo. E, assim, sempre lhe coube uma dupla punição: a existência limitada e a humanidade limitada”, escreve a doutora em Antropologia Cristina Maria Buarque no artigo A culpa como matéria de desconstrução do feminismo.
Na esteira desse pensamento, a psicóloga Maíra Scombatti, cujo trabalho de atendimento é focado em casais e famílias, diz concordar que uma leitura rasa dos mitos, como o de Eva, pela ótica do patriarcal e do machismo estrutural, e os dogmas religiosos entregam essa culpa às mulheres.
“Por isso, entender que essa culpa vai sendo construída pode ajudar a desconstruí-la. Claro que a partir do desejo de desconstrução, da mulher dizer ‘não, não concordo que sou culpada porque nasci mulher ou porque tenho filhas’. E esse desejo pode ser fortalecido em redes e grupos de reflexão”, aponta.
Inclusive, muitos consideram que apenas as mães são responsáveis pela educação dos filhos, eximindo os pais desse papel. A mulher mãe também se culpa quando, diante de tantas tarefas profissionais e na casa, não consegue dar aos filhos a atenção que gostaria.
Como desconstruir a culpa feminina
Equacionar esse sentimento em meio à rotina do dia a dia sem flagelar a si própria deve começar, como atesta Maíra, justamente pela não aceitação dessa narrativa de que a mãe é a única responsável.
“O cuidado dos filhos precisa ser compartilhado; é impossível uma pessoa sozinha dar conta de tantos papéis e funções. Uma coisa é não dar conta sozinha e se cobrar por isso. Outra é numa relação parental compartilhada, que pode ser mãe e pai, mãe e mãe, mãe e avó, todas as estruturas possíveis de cuidado.”
Portanto, ser leve diante disso, educando e estando presente de forma harmônica, saudável e, claro, sem culpa, é possível e necessário. Mas sem a ilusão de que tudo são flores.
“A parentalidade vai ter momentos mais densos, mais pesados, e fazer isso com rede de apoio, com trocas, parcerias, é mais leve, pois se divide essa carga, seja a mental, a física e tudo o que envolve esses cuidados”, diz Maíra, mãe do Theo e do Ian.
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Olhar para os sentimentos e cuidar deles com gentileza
Não nascemos para sermos infelizes nem para carregar culpas através dos milênios. Assim, não se culpe nem se torture pelo que aconteceu ou pelo que não aconteceu.
Se não foi como poderia ter sido, retire da experiência os melhores aprendizados e os aplique nas escolhas e decisões que venha a tomar.
É claro que ler essas sentenças é muito mais fácil do que praticá-las, mas devemos tentar. Para começar, podemos substituir a palavra culpa por responsabilidade.
Assim, somos responsáveis pelas nossas ações, nos colocando vigilantes diante delas. Assim, eliminamos a culpa por algo que não está conectado às nossas ações e assumimos a parcela que realmente nos cabe.
O cuidado de não contaminar as crianças com a culpa
Além disso, precisamos estar atentos para não transferir o sentimento para as crianças, já que se sabe que a culpa pode estar relacionada também ao que uma pessoa aprendeu ou ouviu nos seus primeiros anos de vida, quando mães, pais e educadores criticam ou dão bronca em cada “deslize” cometido por aquele pequeno ser.
Por exemplo, quando culpam a criança por ela ter quebrado uma louça que a família tinha há bastante tempo ou por ter cortado uma roupa, ou até por atrapalhar a intimidade do casal.
“Se algo quebrou, a gente vai buscar consertar, se a roupa rasgou, a gente busca costurar, se tem limite de privacidade que precisa ser reconhecido, isso também pode ser expresso e construído junto com as crianças. O difícil é a gente, adultos, sair internamente desse lugar de punição e recompensa e também se acolher”, diz a psicóloga.
Perdoar para restaurar a vida plena, sem culpa
Peça perdão, perdoe ao outro, mas, especialmente, perdoe a si mesmo. Eis uma ação a ser usada como mantra. Quem reforça esse aspecto é a terapeuta kármica Cynthia de Oliveira.
Ela conta que faz muitos processos de regressão a vidas passadas em seus clientes e há muito percebe que grandes traumas e bloqueios estão sempre relacionados à culpa. Para ela, a única forma de se libertar desse sentimento é por meio do perdão, especialmente o autoperdão.
“Outra coisa importante é identificar quais situações geraram essa culpa e quais sentimentos estão atrelados a ela. Descobrir isso é fruto de um processo interno, e a meditação é uma ferramenta que pode ajudar nesse sentido. Conecte-se consigo mesmo e procure identificar de forma racional a origem do sentimento”, observa.
Conte a sua história de outra forma
Denise compartilha a dica de que cada um, diante de uma culpa que insiste em ficar, ressignifique o acontecimento.
Ela sugere escrever uma carta, sem destiná-la a ninguém. E, ali, usar as linhas como forma de reviver determinada situação, anotando tudo o que gostaria que tivesse sido dito ou fazendo um pedido de perdão.
Já Maíra reforça que é preciso perceber quais os outros sentimentos acoplados à culpa, abafados por ela e necessitados de cuidado. “A culpa vem como uma tampa de uma panela de pressão. O caminho é tirar essa tampa e olhar o que está lá dentro fervendo, para que os cuidados aconteçam.”
Por fim, vale se inspirar em um trecho da crônica Mulheres possíveis, de Martha Medeiros: “Existe a Coca Zero, o Fome Zero, o Recruta Zero. Pois inclua na sua lista a Culpa Zero. Quando você nasceu, nenhum profeta adentrou a sala da maternidade e lhe apontou o dedo dizendo que a partir daquele momento você seria modelo para os outros”.
Assim, seja o seu próprio modelo, não o ideal, mas aquele que é possível no agora.
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GUSTAVO RANIERI é jornalista e se orgulha de ter se perdoado completamente por tudo “que podia ter sido e que não foi”, como escreveu Manuel Bandeira.
Conteúdo publicado originalmente na Edição 246 da Vida Simples
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