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Dentaduras e fraldas sujas
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Não adianta apenas pensar nos processos, de gestão operacional ao funcionamento do organismo, sem olhar para as pessoas envolvidas neles

“No primeiro ano em que entrou dinheiro na comunidade, quem sabia fazer contas ficou com um tanto da renda de quem não sabia”, conta Paula Dib, sobre uma de suas tantas experiências com geração de renda em comunidades tradicionais. E, enquanto trocava a fralda do seu guri, Paula me cutucou: “O inusitado é o que foi feito do dinheiro. Adivinha?”. E seguiu: “Quem sabia fazer contas comprou dentaduras”.

No mundo, onde o pensar dá lugar ao fazer, as dinâmicas tomam rumos inesperados. “Quando todos já tinham dentes, no segundo ano, o desvio acabou”, explica Paula. Num esforço para não derivar em pensamentos sobre como a dignidade é fundamental na construção da integridade, foco na fala amorosa de Paula, que me conduz. “Acostumados com a velocidade do pensar, com o conforto do comprar, nos desconectamos das asperezas e sinuosidades dos processos”, alinhava Paula.

Os processos que surgem da lida das mãos, no tempo lento do fazer, nos ancoram. No ritmo das estações do ano que marcam o tempo de plantio e as marés que dão a hora da partida. E, dessa maneira, equilibramos a velocidade do pensar. Mas, afinal, o que há em comum entre uma fralda cheia, um software de gestão empresarial e a geração de renda em comunidades tradicionais? Todos são resultados de processos. Não adianta automatizar um processo que não é parte da cultura das pessoas ou cuidar da saúde sem observar a alimentação e a digestão.

Precisamos de pessoas

Descobri minha intolerância a lactose aos 18 anos, depois de uma infância sem que ninguém percebesse minhas longas horas de portas fechadas. Foi no nascimento de minhas filhas, envolto em fraldas, que descobri que não tomava água suficiente. Há poucos meses, foram os probióticos do kefir: 40 anos para entender que uma fralda cheia é resultado de um processo, no qual o que eu como e quanta água eu bebo é determinante na minha saúde e humor.

Há 25 anos, no começo do meu trabalho como jornalista, escrevia sobre tecnologia e sistemas de gestão. Ali, aprendi que não adianta automatizar processos de cima: sem incluir as pessoas, a tecnologia não passa de um fetiche.

Uma boa história para exemplificar isso é o da Kika, cantora que intercala sua rotina entre a composição do álbum Navegante (ou Kika pra Viagem) e a instalação do piso do quintal. É ela mesma quem bate o cimento e assenta a lajota. A filha, Bruna, pergunta: “Mãe, desta vez você vai chamar um especialista?”. “Não!” Destemida, Kika é dessas pessoas que aprendem tudo o que necessitam pelos tutoriais do YouTube, como trocar a tela quebrada do tablet da filha. E, dessa forma, faz de Bruna uma protagonista da própria vida, não uma consumidora. Tudo são processos e escolhas. Bora fazer?

Lucas Tauil de Freitas é amigo de mulheres incríveis, protagonistas do mundo que queremos .

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